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Capítulo V O Reinado de Lampião “Sou senhor absoluto De todo este sertão Aqui quem quiser passar Precisa apresentar Licença de Lampião”. Lampião.

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2 Capítulo V O Reinado de Lampião “Sou senhor absoluto De todo este sertão Aqui quem quiser passar Precisa apresentar Licença de Lampião”. Lampião

3 Diferentemente dos outros cangaceiros, isolados ou sem grupos, que atuaram no Nordeste em ação de banditismo, utilizando o assalto, a pilhagem e o crime, deflagrou Lampião uma verdadeira Guerra de larga envergadura, e dentro de objetivos definidos. Guerra extensiva à grande área sertaneja de sete Estados nordestinos: Pernambuco, Paraíba, Ceará, Alagoas, Rio Grande do Norte, Bahia e Sergipe. Guerra de longa duração: cerca de vinte anos. E relativamente ao ambiente do sertão, guerra de massas: grupos de mais de cem cangaceiros e volantes de centenas de soldados representavam, no somatório, milhares de combatentes. Lampião

4 Analisando criteriosamente a sucessão dos fatos dessa Guerra, chega- se a uma dupla conclusão a respeito de Lampião: a)Sem nenhum aprendizado de guerrilha, fez-se inigualável guerrilheiro, sistematizando táticas e assombrando com improvisações espetaculares. E foi mais longe, foi o responsável pela unificação do cangaço, tanto pelo comando geral estratégico deste como por seu singular carisma pessoal, chegando mesmo a impor o cangaço como classe social aristocrática do sertão. b)Seus objetivos, em processo inteligentemente evolutivo, ultrapassaram os limitados propósitos vindicativos para a dominação consciente, plena e absoluta da região sertaneja.

5 Diante disso, pode-se dividir, sem artifícios, a Guerra de Lampião em duas fases históricas, cujas características às vezes se mostravam entremeadas: a primeira, a de Vinditas, uma fase de ajustes de contas, que tem início com sua entrada no cangaço e se estende até 1925, com a duração de cinco anos; a segunda, a de Domínio, de 1926 até a sua morte, em 1938, com duração de treze anos. Não foi à toa, repita-se, que Lampião entrou no cangaço. Tinha objetivos bem definidos. No começo, a vingança (objetivo não inteiramente realizado, pois seus maiores inimigos escaparam com vida de sua sanha vingativa, e depois, o anseio de domínio, que, de fato, realizou. E nisso ficou e gostou. Negar que Lampião não tinha propósitos finalistas porque não apresentava “ideologia política”, seria limitar a tão pouco todo o objetivo humano.

6 Com certeza não foi uma ideologia política que o motivou, mas um ideal pungente e vibrante de vida. Porventura não foram objetivos definidos rebater abertamente as arbitrariedades absolutas do sistema coronelista e lutar pelo legítimo direito humano de sobrevivência e de defesa dos nobres sentimentos de honra e integridade da família? Esquecidos esses propósitos de Lampião, a mentalidade coronelista de outrora e a burguesa de hoje condenou sua reação como se existisse outra modalidade de vida que não a submissão humilhante ou escravocrata ao sistema despótico vigente. E, convenhamos: comparando-se as matanças do “fora da lei”, do “abominável assassino” Lampião, tanto em forma quanto em número e grau, com as barbáries e massacres de populações e povos inteiros, feitos com as armas mais poderosas e mortíferas possíveis a um custo fenomenal perpetrados pelos “dirigentes legais” de muitos países a que temos a desgraça de assistir há décadas, poderíamos dar toda razão aos porta- vozes do povo – em reconhecimento proclamando Lampião com o epíteto de SANTO:

7 “O Santo Lampião Era um home bem devoto Só andava pelo voto Do Padre Cirço Romão. O Santo Lampião Era um home bem querido Ele era protegido Do Padre Cirço Romão Quando o pai dele foi morto Depois é que não sabia; O Santo disse um dia: Precisamos nos vingá. Lampião é inteligente Que o povo bem já se vê O Santo adivinhou Até o dia de morrê”.

8 Doravante iremos expor os acontecidos mais significativos dessa grande guerra: a Guerra de Lampião! No entanto, é esta uma tarefa penosa, uma vez que, daqueles vinte anos transcorridos, praticamente tudo que envolveu a história desse homem misterioso é interessante, peculiar e empolgante, sobretudo os pormenores: suas falas, suas improvisações impressionantes, suas táticas, suas demonstrações de coragem e inteligência assombrosa, de misticismo... Impossível registrá-las todas aqui, infelizmente. Além disso, os fatos todos se davam numa velocidade estonteante, assemelhando-se literalmente a uma luta ininterrupta e tão acesa como o próprio Lampião.

9 Frases de Vinditas Vejamos alguns casos dos mais peculiares dessa fase inicial de “acerto de contas” para que o leitor possa ter uma idéia melhor de como o jovem Virgulino foi, rapidamente, transformando-se no assombroso Lampião por meio de seu inteligente e intuitivo modo de agir e reagir. Maio de 1921 Apanhado assim de supetão, não sabia Lampião, logo de imediato, o que fazer naquela infeliz e “triste vida” a que fora impelido a abraçar. Tinha experiência de trabalho, não de cangaço. Só de uma coisa tinha certeza: da necessidade de vingança! Depois disso, sabia também que em cima dele viria a polícia a mando da “justiça”. Teria de terminar miseravelmente num xadrez infecto ou como um “fora da lei”, isto é, no cangaço, este o único recurso, aliás, para viver em liberdade, muito embora perigosamente. Tivesse os favores da “política”, ou seja, a cobertura dos coronéis, e tudo ficaria como se não fosse. Precisaria para isso virar capanga, o que lhe repugnava. Matador profissional – pistoleiro, assassino - vivendo de matar por matar? Não! Cangaceiro, sim, ele era agora, isto é, um homem injustiçado e perseguido que escolhera, forçado por “retrocessos”, gênero de vida arbitrário.

10 Começou a sentir as primeiras dificuldades. Para viver no cangaço carecia de duas coisas: armas com muita munição e gente. E nem toda gente. Lampião só aceitava aqueles que tivessem, como ele, estrepado na própria carne, o espinho da injustiça. Mas, enfim, para tudo isto carecia do principal: dinheiro. E saiu ele, pela vida e pela terra, sem tino e destino, com um grupinho diminuto: cinco, seis ou sete, formado por seus dois irmãos, e variando, ora com os Porcinos e os Marcos, ora com seu tio Antônio Matilde ou com Antônio Fragoso, de lugar em lugar – sítios e fazendas, vilas e cidades - fazendo arrecadação de dinheiro e víveres, dando sempre as razões de sua entrada no cangaço e dos tributos solicitados. E de logo compreendeu a necessidade da intimidação, como, aliás, faz o Governo. Sob determinados aspectos, o medo tem mais efeito que a persuasão. Daí a tática do “terror” adotada por muitos ao longo da História, no entanto, com objetivos muito mais perversos.

11 Sempre com o tenente José Lucena de Albuquerque Maranhão, o comissário Amarílio Batista Avilar e Zé Saturnino em mente - os considerados responsáveis pelo estúpido morticínio de seu pai José Ferreira, criatura inocente e inofensiva - vinha Lampião armando iscas de fogo para Lucena. Constantemente aumentando seu grupo, de treze para dezessete e assim por diante, e cada vez mais bem municiado, começou atacando algumas localidades e dando seus primeiros combates com os tenentes Optato Gueiros e Eutíquio. E assim, em sucessivos e fulminantes ataques, levou o terror às populações sertanejas de várias localidades e fazendas. Tudo isto Lampião fazia por estratagema, com o fito de atrair o tenente José Lucena para um ajuste de contas: “Quero quebrar e sujicar o sedém deste peste de Zé Lucena”.

12 Entrementes, reuniram-se quatro oficiais de Pernambuco e o tenente José Lucena, para darem, em ação combinada, combate eficaz a Lampião com o acordo simultâneo das fronteiras interestaduais. De Santana de Ipanema saiu Lucena com uma volante de sessenta praças para Olho Dágua do Chicão. Tendo disto notícia, fechou Lampião, com mais vinte homens, numa disparada para ali. E a 9 de junho o atacou furiosamente quiném onça faminta. Foi apenas um golpe de mão. O “todo-poderoso” Lucena, acostumado a correr atrás de cangaceiros que dele sumiam apavorados, ficou estarrecido com o atrevimento do ataque e a afoiteza da ofensiva inusitada. Por desforra, matou, em caminho, o pacato José Porcino, que não havia participado da luta. E, temeroso face às perspectivas de rumos novos e desconhecidos que parecia a luta contra o banditismo tomar, requisitou destacamentos e volantes por perto, perfazendo sua força um total de cento e vinte praças bem equipados. Por seu turno, Lampião arrebanhou mais gente, perfazendo um grupo de mais de quarenta cabras e com muita prevenção de armas e munição. Passou Lampião pelo Espírito Santo (hoje Inajá), deixando para Lucena pista visível e fácil e pernoitou na casa de seu amigo José Mandu, no Poço Branco, posição estratégica que escolheu para dar combate.

13 Em 20 de junho aconteceu a primeira grande batalha que representou, sem dúvida, o primeiro grande passo de Lampião para a conquista do sertão. O despertar foi cedo. Depois do café gordo para dar sustança, distribuiu Lampião seu pessoal por trás de pés-de-pau, de pedras, de barrocas e cercas: as emboscadas para combate. A casa com o curral, ponto mais difícil, porque perigoso, decerto seria o primeiro alvo visado pelo inimigo: essa posição reservou ele para si. À direita da casa, oculto pela serroteira, seu irmão Antônio, com o bote pronto para dar retaguarda, operação esta de que se tornaria, depois, exímio mestre. Lampião em seu café da manhã

14 Lampião fez privinição quiném experimentado cabo de guerra: “Os macacos 1 não vêem todos juntos, não. Antônio Matilde, sustente no fogo os que chegarem no coice. A gente só faz fogo quando os primeiros chegarem na frente da casa. Espere o sinal meu. Não gastar munição à toa. Se a gente tem de fugir é por detrás, pelo rio. Mas esperem eu dar o sinal”.

15 Todos os cálculos de Lampião deram certo: por onde e como o inimigo atacaria. Logo que a cabeça do pelotão de Lucena chegou defronte da casa, fez alto, a modo de observar aquele misterioso silêncio e de ganhar posição. Antes que isto acontecesse, Lampião deu o sinal convencionado com um tiro de pistola, rompendo o tiroteio. A tropa, num sufragante, deitou corpo e tratou, arrastando-se, de logo se mofumbar e entrincheirar para responder ao fogo. O segundo pelotão foi detido pelo fogo de Antônio Matilde. A peitada não foi de graça, não. Parecia um redimunho dos infernos! Na tiroteiação, balaços açoitavam as pedras num baticum enervante, ou assobiavam doidamente no meio do panavueiro chamando a morte. Os cangaceiros, animosos, lançavam, no parraxaxá, desafios, insultos e xingos... gargalhavam sarcasticamente de mangação... rinchavam e zurravam feito animais... Infuleimado o sangue com a quentura das armas cuspindo fogo e escoiceando nas detonações, as gargantas torturadas de sede com a abafação da atmosfera produzida pela pólvora queimada, os olhos zaros e ardendo e a vista alazã, sem trégua para tomar alento, depressa ficaram os combatentes bebos de raiva virando feras!

16 Lampião levava vantagem dentro de melhores emboscadas cuidadosamente escolhidas. Porém, a polícia usava carabina-fuzil de longo alcance, semi-automático, e bala de aço de grande poder perfurante. Lampião utilizava rifle papo-amarelo ou cruzeta, arma de repetição, que esquenta muito após quarenta tiros e que é de muito menor alcance, e bala calibre 44, de chumbo, chata, de poder antes rompedor que penetrante. Mas a situação era perigosa para ambos os lados. E entre ofensivas e contra-ofensivas, os cangaceiros sob as ordens de Lampião e a polícia sob a do Oficial instruído em curso de caserna, Lucena, o combate foi terrível. Houve um corpo-a-corpo, desesperado e sangrento: engalvinharam-se o valente cangaceiro Cavanhaque e um “macaco”, rapidamente passando os dois a-pronto. O sol se incrisava. Lampião, verificando a munição escassa, deu sinal de retirada – cinco tiros de pistola para o ar. Correndo agachados e atirando, os cangaceiros retiraram-se. Lucena não saiu na inculca deles. Voltou, com a tropa muxibas, trambecando, para Santana do Ipanema.

17 A tarde se arriara, por coincidência, sombria e triste, envolta em tons arroxeados. E com ela, a catinga começava a adormecer, toda desarranjada e destroçada pelo espasmo da luta, parecente, de mesmo, um espojeiro de monstros anti diluvianos... O padre José Bulhões, vigário desta cidade, ouviu de seu amigo Lucena o seguinte comentário sobre a batalha de Poço Branco: “Figurei, em dado momento da luta, que Lampião queria mesmo acabar comigo. Depois, diante de seus estratagemas, me veio uma dúvida: Não é possível! Seria mesmo Lampião o comandante? Ou esses cabras estão sendo comandados por algum oficial estrategista de alta patente, egresso do Exército?!...” Classificou também ele, a retaguarda de Antônio Ferreira de “manobra magistral”.

18 Depois dessa batalha os dois “comandantes” ficaram se temendo mutuamente: Lampião respeitando o poderio numérico e bélico de Lucena, que, aliás, nunca se aventurava por fora das estradas reais, e Lucena, a sagacidade de Lampião. E através desse grande combate e antes que fosse tarde, tomou Lampião o pulso do sertão e o segurou firme. De muito concorreram para isso as declarações de Lucena. Diante desse “sujeito perigosíssimo, forte e valente” os coronéis tremeram. Alguns tentaram reagir: Anjo da Jia, Gérson Maranhão, Petro da Glória... Foi pior. O melhor mesmo e certo seria fazer “pauta” (pacto, acordo) com ele, de amizade e auxílio mútuo. E é aí que se revela outra grande face da figura ímpar de Lampião: seu senso político! Poço Branco foi definitivo para o início do reinado de Lampião. Sobre os acordos com os coronéis cabe uma ressalva. Todo coronel, via de regra, ao menos intimamente, era detestado pelo cangaceiro. Não lhe servia nunca de “ideal”. Agora, melhorar de sorte e condição, ter o que é seu e gozar de bem-estar, isto sim, é aspiração natural de todo ser humano. Muitos dos pactos (pautas) de Lampião com os coronéis; “simbioses”, jamais! Mesmo porque, alguns, quando podiam, traíam Lampião.

19 Logo depois desse combate, as primeiras deserções. Antônio Porcino exclamou: “Com Lampião a briga é pra doido!...” E aquela foi sua derradeira luta que deu unido a Lampião. Arrenegou também Antônio Matilde, seu tio, em continuar a vida assim muito dura de cangaço. Foi-se, com nome trocado, para as bandas da Paraíba. Outro cangaceiro foi preso e assim, praticamente só, reduzido a uns poucos, cerca de uns sete, sem recursos para manter o grupo próprio, resolveu Lampião bandaiar-se para o de Sinhô Pereira. Não sem antes fazer uma tentativa: mandou pedir à Baronesa de Água Branca vinte contos, verdadeira fortuna na época: Por resposta disse ela: “Tenho vinte contos mas é para comprar de munição para o couro dele!” E tratou de fortificar a cidade, obtendo ainda forças de Maceió. Lampião danou-se, mas teve de adiar, contrafeito, para tempo madurado e oportuno, o ajuste. Sabedor, em caminho para encontro com Sinhô Pereira, que Zé Saturnino vivia lhe botando tacha, resolveu Lampião, de afoita, dar-lhe uma lição. Por tática de surpresa foi cair em cheio na fazenda Pedreira. Cercando a casa, Lampião meteu umas buchas e aguardou a resposta que veio imediata. Então, o tempo se fechou. Por sorte de Zé Saturnino, não estava ele em casa, e sim seu cunhado, Vicente Moreira, que antes fora cabra do grupo de Cassimiro Honório.

20 Enquanto, sua sogra, D. Xanda, e sua mulher, com menino de braço, defendiam-se deitadas dentro do quarto e cercada de cafiotes, resistia intrepidamente Vicente auxiliado por dois cabras seus até queimarem o derradeiro cartucho. É quando se fez silêncio. Lampião ordenou que os defensores saíssem. Para surpresa sua, quem saiu foi D. Xanda, mãe de Zé Saturnino, a qual foi logo suplicando, com todo avexame, não matasse seu genro. “Logo vi – disse Lampião – que não era seu filho, porque ele não briga, só faz correr”. E diante das insistências de D. Xanda: “Deixe de tanto aceleiro, que homem valente eu não mato, a não ser na luta, medindo forças”. Vicente Moreira, apareceu fora. Lampião repetiu gritando: “Homem valente como você, Vicente, não se mata, deve viver para tirar raça de cabra bom!” E fizeram pacto de não mais brigarem entre si. Em antes, assim que Zé Saturnino ouviu os primeiros tiros, compreendeu de que se tratava e reuniu alguns cabras armados, mas não teve coragem de entrar na luta, ficando de longe até o fim...

21 Ainda em caminho, a 21 de agosto passou Lampião em Poço do Negro com seus dois irmãos e mais dois cabras, em visita de cumprimento à avó materna, por seu aniversário natalício, a 15 de agosto (Veja descrição no quadro ao lado). “Ô, Ô, Mulé rendêra! Ô, Ô, Mulé rendá! Chorou? pru mim não fica; Saluçou? vai no borná”. Lampião Mulher Rendeira Mulher rendeira

22 A 15 de agosto de 1921 foi Lampião ao Poço do Negro, riacho próximo à casa de D. Jacosa, para visitas de cumprimento à avó materna, em seu aniversário natalício. Tia Jacosa, como era conhecida por seus familiares, no arrasto dos oitenta e tantos, tinha a cabeça encanecida e, desatados do cocó, fios de cabelo flocavam ao capricho da aragem matutina e doce, finos quiném algodão-seda, empoados de luz, com parença de auréola de santa... Quedou-se Virgulino, do lado de fora da casa e sem ainda ser notado, contemplando, por alguns instantes, aquela figura- símbolo de uma geração que alicerçou a economia doméstica sertaneja e lhe deu fama: a Mulher Rendeira!

23 A viveza do menino, agora crescido, sempre havia atraído as predileções da avó e madrinha. Assim, ao inteirar os cinco anos de idade, conseguiu ela levar o menino para a sua casa, aliás ali perto, a cento e cinqüenta metros da casa paterna. À influência educativa dos pais, que não cessou, acrescentou-se a desta senhora – a “Mulher Rendeira” – a quem o menino embasbacado admirava quando ela, com incrível rapidez das mãos, trocando e batendo os bilros na almofada e mudando os espinhos nos furos, tecia rendas e bicos de fino lavor. Uma festa, a sua presença. Encontro braiado de contentamento e pesar no coração de todos: alegria de se reverem e mais ainda naquele dia feliz do aniversário de Tia Jacosa que não se cansava, toda ancha e enlevada, de espiar para Virgulino, seu filho de criação e neto de estimação; tristezas e lágrimas com as notícias das trágicas mortes dos pais e o expatriamento, sem destino, dos irmãos menores...

24 Quando Virgulino, todo dolero e distinto, relatava outros assucedidos e as alentadas brigas que tivera, Tia Jacosa, sentada bem de perto na frente dele, teve uma visão –“um sonho acordado”, conforme ela mesma declarou: - “Nunca vi Virgulino tão grande! Ele crescia...crescia... Parecia o sertão interim!...” Realmente, ali estava o próprio sertão encarnado num gigante da raça para dar resposta de protesto às injustiças dos poderosos e às condições miseráveis da terra abandonada. Tocado no momento seu espírito artístico por um lampejo de inspiração, prometeu Virgulino fazer uma música bem bonita em homenagem à sua querida avó.

25 Cinco meses depois, precisamente em 22 de fevereiro de 1922, estava outra vez Lampião no Poço do Negro. Desta feita trazendo uma grande novidade – a canção “Mulher Rendeira”, música e letra de sua autoria - prometida homenagem à sua estremecida Tia Jacosa. Não se teve de emoção a boa velhinha ao ouvir, pela primeira vez cantada e na voz de Virgulino, a sua canção. Comovida e admirando sem cessar a habilidade – “a arte” - de seu neto, disse: - “Não é que ele aproveitou as palavras que eu costumava dizer a ele quando, menino reinador e desesperado, começava a embirrar com suas teimas?: - Chorou pru mim não fica, saluçou vai pru borná?” E repetia: -“Ele nunca deixou de fazer arte! Espie essa agora...”

26 - “Não é que ele aproveitou as palavras que eu costumava dizer a ele quando, menino reinador e desesperado, começava a embirrar com suas teimas?: - Chorou pru mim não fica, saluçou vai pru borná?” E repetia: -“Ele nunca deixou de fazer arte! Espie essa agora...” “Ô, Ô, Mulé rendêra! Ô, Ô, Mulé rendá! Chorou? pru mim não fica; Saluçou? vai no borná”.

27 Tia Jacosa chegou mesmo a ensaiar, com Virgulino e devagarinho, uns bons passos trêmulos de dança que, no momento, inspiraram ao neto a criação da famosa dança cangaceiresca do Xaxado. Os demais, em roda, esquentavam o ambiente, cantando a canção e batendo, em ritmo, o pé e as palmas das mãos. Em seguida, recordou ela, com saudade e entusiasmo – parecendo naquele momento ter rejuvenescido - seus tempos de mocidade... Dia inesquecível para toda a família, memorável pela apresentação dessa canção que se tornou hino de guerra do sertão e hoje pertencente ao cancioneiro popular nordestino e difundida internacionalmente. A famosíssima composição funcionava como condão mágico nas gestas lampeônicas. A seus acordes os cangaceiros vibravam, inflamantes, nos combates. E seu canto ressumava, entusiasta, nas vitórias alcançadas. Tia Jacosa ainda viveu pouco mais de dois anos ouvindo sua canção divulgada por todo o sertão e fazendo seu neto crescer cada vez mais como “homem” e na “arte”.

28 Houve diversas tentativas de usurpação da autoria desta música, como o compositor Manuelzinho Araújo, em 1935, que gravou Mulher Rendeira como sendo de sua autoria; os trios Madrigal e Melodia cantaram a toada em arranjo de Barro e Nordestino, como autores; Bill Farr, na Sinter, interpretou-a como não tendo autor e assim por diante. Porém, seu legítimo autor é Lampião, que a compôs aos 23 anos de idade em homenagem à sua avó materna, conforme diversos depoimentos dos que com ele conviveram. Não entendia Lampião de teoria musical. Não sabia escrever música. Disse Ventania, cangaceiro do grupo de Lampião: “Ele inventava a musga com as palavra e adespois ensinava a nóis até todo mundo aprender”. Outros cangaceiros declararam o mesmo, por exemplo, Zé Sereno, que é peremptório em afirmar que Lampião é o autor da melodia e da letra de Mulher Rendeira.

29 Interpretada por centenas de orquestras e musicistas, vencedora de dezenas de prêmios e concursos do mundo inteiro, admirada e aplaudida em pé por leigos e eruditos, nem de longe, jamais, Lampião poderia imaginar até onde chegaria a fama de sua genial composição! Além dessa toada-baião mais famosa de todos os tempos, através da qual Virgulino glorificou simbolicamente a pessoa, a profissão e o produto profissional de sua avó, tomada como símbolo das rendeiras sertanejas, Lampião compôs dezenas de músicas. Frederico Bezerra Maciel, seu maior biógrafo, chegou a coletar dezessete composições autênticas de sua autoria. Lamentavelmente, atingida a residência do autor de Lampião, Seu Tempo e Seu Reinado, pelas grandes cheias de 1970 em Recife, volumosa cópia de pesquisas, coletadas durante os nove anos que andou pelos sertões nordestinos, inclusive todas as composições musicais de Lampião, foi carreada pelo furor das águas indomadas.

30 A 23 de agosto de 1921, foram recebidos com muito alegramento na fazenda Carnaúba, por Sinhô Pereira. Tomaram parte os três irmãos Ferreira em todos os combates de Sinhô em território pernambucano desde o primeiro dia até 11 de dezembro, na fazenda Abóboras. Cabe ressaltar que esta é apenas uma das inúmeras provas que teve que enfrentar o autor desta admirável obra a fim de realizar a missão que lhe foi destinada, por obra de uma força invisível, misteriosa, indômita, de trazer à luz a verdadeira história deste homem denominado eterno por Austragésilo de Ataíde, presidente da Academia Brasileira de Letras.

31 Desde logo, começou Sinhô Pereira a sentir e reconhecer as amostrações da superioridade tática de Lampião e a admirar seus dons carismáticos de intuição e pressentimento de perigos, dom esse extremamente interessante, o qual muito contribuiu para fazê-lo escapar ileso da polícia por quase vinte anos, mesmo tendo mais de cinco mil homens em seu encalço. Tanto é que o comando ia, aos poucos, escorregando naturalmente, sem esforço e sem inveja, para as suas mãos. Nesse meio tempo costumava se ausentar Lampião por alguns dias do grupo de Sinhô para adquirir armas e “milho” (munição), que enterrava em lugares só dele sabidos. Não poderia dar início ao cangaço, por conta própria, sem os meios necessários. Inteligente e previdente. Homem de plano.

32 Lentamente, desarraiava-se a tarde de 4 de junho de 1922, na fazenda Feijão, município de Belmonte. As últimas claridades tíbias afagavam docemente a mataria, desde as copas virentes, com seus ramos de entrançadura retorcida. Convocou Sinhô Pereira o seu grupo, exigindo todos prontos e arreados a modo de irem brigar: chapéu de couro e apragata, cartucheira e bornal, rifle e punhal... Formou com eles grande semicírculo e colocou- se no centro do diâmetro, de frente para todos. À sua direita, Lampião. Atrás, Luís Padre ladeado por Antônio Ferreira e Livino. Uma arrumação planejada. E botou falação, séria e alentada, como jamais o fizera: antes de tudo, agradeceu o sacrifício e adjutório de todos; apresentou as razões por que ia deixar o cangaço e partir para longe (exigência de sua família e cansaço); enfim, amerceava-os com um substituto, já de todos estimado e por todos admirado, que já vinha até mesmo chefiando o grupo: Lampião!

33 Em resposta, todos os cabras, num gesto entusiasta e de tal modo unânime que até nem parecia espontâneo mas ensaiado, levantaram para o alto os rifles, segurando-os pelo meio, a modo de cangaceiresca apresentação de armas, e em uníssono fortemente exclamaram três vezes: “Lampião! Lampião! Lampião!” Prosseguindo, virou-se Lampião para o agora seu tão sonhado grupo próprio de cangaceiros, e lhes traçou, em duas breves frases, jamais ouvidas até então, os princípios básicos de um chefe que sabe o que quer: -que confiava neles; -e que “cangaceiro é como irmão um do outro”. E percorrendo a meia-roda, abraçou calorosamente cada um de seus subordinados. Seguiram-se espontâneas salvas de tiros para o ar. Depois de alegre e farta janta comemorativa, acompanhada de vinho e até discurso, um animado baile finalizou a festa no puxado do fole e no arrasto das cabrochas sacudidas e quentes, pastoradas ali pelos arrebaldes próximos.

34 A Lampião não passou despercebida a coincidência desse fato com a data de seu aniversário natalício em que inteirava vinte e quatro anos. Lá pelas tantas, enquanto a festança continuava a rolar animada, retirou-se ele, sozinho, cerca de duzentas braças, para o meio da catinga. Precisava estar a sós para o significativo ato que iria no momento praticar. Como testemunhas, apenas o silêncio mágico daquele ermo e as estrelas piscando reluzentes lá no fundo do firmamento. Ajoelhou-se na terra. Do bolso tirou pequena estampa da Virgem da Conceição, que sempre conservava consigo. Colocou-a em pé no amparo de um toco de pau, infincou, de lado, uma vela de cera no chão e acendeu-a no riscado do “atrifício” (artifício, sinônimo de Matricó, que designa uma espécie de isqueiro rústico, antigamente muito usado na zona rural sertaneja). Rezou o terço e uma oração-forte que sabia de cor e em que, no momento, tinha fé. Pediu a guarnição e a bênção de sua celestial Madrinha, a quem jurou ser justiçoso e proteger os pobres e os inocentes, as mulheres e as crianças.

35 A chamada oração-forte ou oração forçosa, poderosa, prodigiosa é um hábito corrente no sertão. Eis o teor de uma delas, chamada oração da Pedra Cristalina, mal copiada, misteriosa em seu conteúdo e interessante na sua redação, encontrada entre os papéis de Lampião: Completando esse ato de consagração juramentada e num gesto afiançado, inclinou-se e beijou o solo sagrado e desinfeliz do sertão, que lhe dera o berço e ao qual tanto amava. As leituras das gestas de Carlos Magno e dos Doze Pares de França, eclodiram agora através dos ativos automatismos inconscientes da mente, levando-o assim, sertanejamente, diante da imagem sagrada de sua Dama espiritual e Santa – a Senhora da Conceição - e com juras de grande fidalgo, a armar-se Cavaleiro do Cangaço!

36 “Minha pedra chistalina, que no mar foste achada entre cálix e a hóstia consagrada, tremo a terra mas não tremo nosso Senhor Christo no altar assim treme os coração dos meus inimigos quando olharem para mim eu tibenzo em cruz inão tu a mim entre o sol ialua i as Estrellas as três pessoas distintas da Santissima trindade meu Deus na travissia avistei meus inimigos meu Deus aqui fasso com elles Com o manto da Virgem Maria sou cuberto e com o sangue de meu senhor Jesus Christo sou valido tens, vontade de atirar porém não atira si mi atirar água pelo cano da Espingarda correrá si estiver vontade de mifura a faca da mão cahira si miamarrar os nós dizatarão e si mitrancar as portas si abrirão. offiricimento salvo fui salvo sou e salvo serei com a chave do sacrário eu me fecho I PN 3 AM i 3 Gloria apatre iofereço a 5 chagas de Nosso Senhor Jesus Christo”.

37 Provavelmente, esta oração de sabor cangaceiro, tem sua inspiração e relação com as tradições célticas medievais (século VI) do Ciclo Bretão do Rei Artur (personagem lendária do País de Gales) ou Ciclo da Távola Redonda, de tantos poemas e romances. Pedra Cristalina seria um fragmento do sagrado cálice de esmeralda em que Cristo bebeu, na Santa Ceia, o sangue que derramaria na cruz. Daí a “força” desta pedra. Como chegou isto até o sertão? Do mesmo modo que a lenda de El-Rei D. Sebastião: através de leituras e da tradição oral. A principal preocupação de Lampião era a obtenção de dinheiro para manter seu grupo de roupa e mantimentos, armas e munições... Nesse ponto, mostrou-se ele grande financista – mais uma faceta de sua rica personalidade. Sabia de quem e como obter dinheiro e melhor ainda sabia aplicá-lo. Conhecia todos os coronéis, fazendeiros e ricaços de seu meio mundo. Não pagavam impostos ao Governo? Teriam, também, de contribuir, não resta dúvida, para sua mantença, por mal ou por bem.

38 Dentre as pessoas de suas primeiras cogitações neste sentido estava a matriarca Baronesa de Água Branca – D. Joana Vieira Sandes de Siqueira Torres. Aliás, quase ano fazia, mandou-lhe pedir vinte contos e recebeu aquela resposta “desaforada” e mais: com seu prestígio, “encheu ela de ‘macacos’ a rua de Água Branca”, quiném praça de guerra. Por isso e por tática, deixou Lampião passar o tempo e a tensão desfazer-se... Vagas notícias dele tão distante, Pajeú, Ceará... quem sabe mesmo desaparecido, persuadiram a Baronesa de não existir mais o perigo. Preliminarmente, enviou Lampião um espião, disfarçado de miçangueiro, à feira de Água Branca para aceirar o ambiente, quantos “macacos”, se volante por perto, se a Baronesa em casa...Bem inteirado, pois, da situação, pelo fingido bugigangueiro, rumeou Lampião, sem tardança, para Água Branca. Durante quatro dias viajou caladim, só de noite. De dia se escondia e descansava.

39 De 27 para 28 de junho de 1922, não longe da cidade, exceção das sentinelas em escala e em revezamento, pernoitaram todos os dezoito cabras, espalhados, ocultos pelo mato. Ninguém podia fumar, a não ser cobrindo a ponta do cigarro aceso dentro do chapéu de couro. Alta madrugada, formou Lampião quatro grupos de dois homens com seus rifles, devidamente disfarçados, e mandou-os postarem-se nas entradas das ruas para bloqueio da cidade até o fim do assalto. Determinou que os dez restantes cabras enchessem duas redes que mandou esticar nos paus, com seus rifles, cartucheiras, chapéus de couro e bornais, ajeitando tudo a modo de dar parecença de defuntos. Em seguida, melou as redes, por baixo, com tinta encarnada, para dar a impressão simulada de sangue de pessoas assassinadas a faca ou a bala. E ao quebrar da barra de 28 de junho, penetrou na cidade com os “carregadores” caminhando ligeiro e convocando, a espaços, segundo se usa no sertão: “Chega irmãos das almas!” Na porta do quartel, diante do soldado vigia, pararam. A sentinela, espantada, foi logo perguntando: “Que é isto?”

40 Fingindo avexação, responderam alguns ao mesmo tempo e atabalhoadamente: “Isto foi dois que nós achou e truxemo para fazer o corpo delito”. A sentinela: “Arta! Logo dois?!”. E mandou entrar. Os cabras embocaram com as redes, arriando bem devagarinho os “defuntos” no chão da sala do corpo da guarda. Enquanto isso, a sentinela correndo: “Vou chamar a guarda que está drumindo numa casa vizinha, perto”. Logo que ele saiu, cada cangaceiro deu de garra de suas armas. Quando a guarda apareceu, cercaram-na os cabras, apontando-lhes os rifles engatilhados. Ameaçador, disse-lhes Lampião mostrando a boca dos rifles: “O defunto é esse, visse?! E não se mexam!...” Abriu o xadrez, soltou os presos, uns vinte e prendeu os soldados. Apossou- se das armas e munições da polícia, distribuindo-as aos ex-detentos. Assim, com os dez cangaceiros seus ali no momento, completou um grupo de trinta homens armados e prontos para o saque.

41 Saíram todos pelas ruas, acordando a tiros a população e saqueando as residências e casas comerciais dos abastados. Principalmente o solar da Baronesa. Que teve que entregar só em dinheiro mais de trinta contos de réis, além de ouro, jóias, roupas, utensílios, e até vinte e cinco cabras leiteiras, que eram criadas no grande muro da casa. “Ficou somente as teia (telhas) da casa!” – disse um cabra. Pelo meio da rua, de braço dado a Lampião, teve a Baronesa de passear, humilhada. Pela primeira vez, num ataque de grande dimensão, cantaram os cangaceiros, ébrios de entusiasmo pela vitória, o hino de guerra “Mulher Rendeira”, xaxando ao ritmo do forte coice dos rifles batendo no chão. Finalmente, divididos em grupos, deixaram a cidade, tomando várias direções, por tática de despistamento, para se reunirem adiante. Tão rápido e fulminante foi o ataque relâmpago de Lampião, que Lucena, com pouco ao chegar, comandando poderosa volante, só encontrou desolação e pavor... Para poderem conduzir o aloprado montante do saque, arrebanhou Lampião, pela redondeza, cavalos e arreios com que montou todos os seus cabras. Até um cavalo especial, fino e caro, do Padre Chico ele levou. Cortando a crina e a cauda desse animal, exclamou:

42 “Padre rico, bancando coronel montado em animal de luxo, Deus não gosta!...” Essa espetacular tomada de assalto em Água Branca repercutiu tremendamente em Alagoas, Pernambuco, Bahia, em todo o Nordeste, e até na Capital Federal. Choveram telegramas e protestos das famílias, da imprensa, das Assembléias, de toda parte... Agora, com grupo próprio, fez questão Lampião de propagar que era ele mesmo. Nem um ano mais tarde, depois de catalogadas tantas e tão estranhas e fantásticas façanhas, Virgulino já era chamado de “O Celebérrimo Lampião!” Depois de Água Branca, seguiu no encalço de Lampião o tenente Lucena. Começou então, Lampião, a usar uma de suas mais sagazes e eficazes táticas: ziguezagueava por localidades e cidades, subindo e descendo quiném relâmpago quando se abre, as estradas e nos caminhos deixando recados e bilhetes atrevidos para Zé Lucena, declarando: “Entro em Alagoas quantas vezes eu quero.” E para fazer raiva e provocar esse tenente, tomava a tangente contrária. Fazendo alto nas proximidades das pistas deixadas por Lampião, continuava Zé Lucena na perseguição de seu inimigo, incontrolado de furor com os bilhetes e recados deste, dando pouco descanso e comida à sua tropa, que já estava mais morta que viva, e repetindo, abodegado: “Eu pego ele, eu pego ele, cachorro da gota!...”.

43 Dividiu Lampião seu pessoal em pequenos grupos e ordenou tomassem diferentes direções. Usou ainda de vários estratagemas de despistamento: espremendo por cima das folhas de mato, em determinados rumos, sangue de bichos mortos e depois seguindo rumos contrários; multiplicando rastos aqui, apagando-os acolá, cruzando os caminhos mais adiante, para lá e para cá, desorientando assim o tenente que, não sabendo que sentido tomar, endoidou mesmo, em ires e vires entre Espírito Santo e Alagoas!... Nessa altura, particularmente já se comprazia Lampião em apeiar os poderosos, dobrar os coronéis, desmoralizar os comandos militares... Aguardava apenas o dia propício, não por adivinhações cabalísticas ou por horóscopos, que nisto absolutamente não acreditava, mas aquele dia ou tempo oferecido pela própria natureza... E esse dia sempre chegava... Deste modo, em dia oportuno, comandou Lampião com quatorze cabras seus, e mais dez homens unidos a Ioiô Maroto (Crispim Pereira de Araújo) o famoso assassinato do coronel Gonzaga (Luís Gonzaga Gomes Ferraz), prefeito de Belmonte. Tinha sido o tal Maroto espancado barbaramente e torturado a mando de Gonzaga, por ser remanescente do grupo de Sinhô Pereira. Ora, “em homem não se dá, se mata” (código do sertão). Desfeiteado, Ioiô jurou vingança.

44 Seguindo todos as inteligentes ordens de seu grande chefe, foi alcançado o objetivo: eliminado o prefeito. A residência de Gonzaga apresentava-se com as portas e janelas pipinadas de bala e o reboco das paredes destambocando. (Segundo testemunhas, na ocasião Lampião peiou seu rifle e disparava com tamanha velocidade que, na boca da arma, se formava um clarão de tocha permanente, confirmando assim o seu apelido). No seu interior, trancados num quarto, a viúva em folha, desmaiada, e os filhos, agarrados nela, chorando apavorados... Retiraram-se os cangaceiros pelo lado predeterminado por Lampião. Ufanos, cantavam “Mulher Rendeira”.. Antes de deixar a cidade, retirara Lampião a aliança de casamento de Gonzaga e a botou no seu dedo, tendo improvisado no momento uma quadra de longa divulgação no sertão: “A aliança de Gonzaga Custou um conto de réis; Lampião botou no dedo, Sem gastar um derréis!...”

45 Grande repercussão a morte de Gonzaga. Com os dias de 1922 correndo e diversos ferozes combates acontecendo, cada vez mais autoridades envolvidas, praças, soldados, forças volantes, tenentes, Governos, mobilizavam-se na caça a Lampião, que de lugar em lugar, celeremente, riscava as catingas sertanejas, fazendo a “cata” ou “varejo” - como ele chamava uma seqüência de assaltos pacíficos - para mantença sua e de seu grupo, intimidando, fazendo pactos, lutando, cantando e xaxando para lá e para cá, sem ninguém conseguir pegá! Não faltavam os “corajudos” e “destemidos” sargentos, tenentes, macacos: “Eu prá pegá Lampião num perciso nem de Deus!”. “Eu vim pra dá cabo de Lampião!”. Fizeram tais afirmações para completa vergonha das forças armadas brasileiras por longos vinte anos, perseguindo e guerreando contra um grupo “diminuto”, incomparavelmente menos equipado e municiado mas infinitamente mais corajoso, destemido, desapegado, e, sobretudo, com objetivos bem definidos e sob o comando de um homem verdadeiramente idealista e genial.

46 A junho de 1923, descobriu Lampião que um tal de Zé Batista Quirino havia tomado parte ativa na diligência que assassinara seu pai, atendendo pedido do delegado Amarílio o qual havia recebido dinheiro de Zé Saturnino. Impressionado com a incrível revelação a respeito duma gente com quem nunca havia bolido, optou Lampião pela vingança contra os Quirinos, respeitando unicamente as mulheres e crianças, nos conformes de sua promessa, na fazenda Feijão, quando se armara cavaleiro do cangaço. E comentava cheio de rancor: “Eles têm de pagar! Para que foram desmantelar minha família? Hoje eu vivo nessa vida do cangaço por causa deles”. Resultado: a destruição total das propriedades e bens dos Quirinos, diversos mortos, escapando, entretanto, com vida o protagonista da família, Zé Batista. Após tais acontecidos, caminhando, Lampião conversava com seus manos dizendo que a vingança estava quase completa; faltando apenas quatro: Zé Saturnino, Lucena, Amarílio e Zé Batista; mas já havia arrasado com muita propriedade, muito bicho e até familiares de todos eles. Além dos Quirinos, desde que fora banida a família Ferreira de Nazaré, estabeleceu-se entre Lampião e os nazarenos uma situação perigosa e uma conta a acertar. Sempre com provocações de ambos os lados os cabras de Nazaré estavam cada vez mais prevenidos, armados e contando com a proteção da polícia.

47 Nos idos dos anos de 1923, era Nazaré insignificante no tamanho (além da capela contava com 27 edificações em sua única rua), porém importante no cenário da história do cangaço, principalmente de Lampião. Saltando fora dos dias comuns, dias de arrasto, invariáveis, monótonos e compridos, corriam agitados os dias atuais. O assunto palpitante e preocupante era o casamento de Licor, prima de Lampião, e a vinda deste para a festividade. Na barbearia de Manuel Flor, ponto preferido de freqüência pelos aviciados em conversas de toda versidade, a vida alheia principalmente, se dizia: -“Tem muita volante esgravetando este sertão brabo... muito cento de sordados tão na persiga de Lampião”. -“Mas Lampião diz que gosta que persigam ele e açula pra brigá de vera. O cabra é da peste!” -Nunca mais fartou volante aqui. É uma atrás da outra. -Inté se espera uma no casamento de Licô”. -Danega! Já tou vendo: vem ser bala quiném os trinta!” Rapazes e meninotes não davam palpite. Apenas ouviam, aperuando.

48 Depois do banho de cuia no fim das lidas do dia, cheirando a folha de mato novo, três cabrochas bisbilhoteiras tagarelavam: -“Visse o vestido de Licô como está dolero? -“Os apreparo da festa são grande mesmo!” -“Pie só: sabe quem vem pra festa?: Lampião!” -“Ele e os menino. Tem cada um da pontinha!...” -“Eu acho Juriti e Antônio Rosa os mais bonito”. -Dextá, o mais bonito é Lampião! -“Ah! isso é” – confirmaram as outras duas a uma só voz. -“Açoita os mais todos!” Raimundo do Pico, sentado num tamborete na calçada de sua casa e muito ancho na sua sanfona de oito baixos, tocava “Mulher Rendeira”, dizendo para os passantes: “Gosto dela! Foi Lampião que fez os verso e a musga se alembrando de sua avó, a Tia Jacosa, que criou ele e era rendeira...”

49 E assim, mal ou bem, todos só falavam em Lampião. O casamento de Licor foi o momento culminante do rompimento definitivo, que aos poucos vinha se processando, em desde 1919, através de tranças e atritos freqüentes, entre os Ferreiras e os nazarenos. Maria Licor Ferreira de Lima, simplesmente Licor, era prima legítima de Lampião, cujas mães eram irmãs. Sabedor de seu casamento, chegou Lampião no dia marcado para a sua realização, a 31 de julho de 1923. Ao sol ardente do meio dia, penetraram na povoação dezesseis cangaceiros na ativa, sob o comando de seu garboso e elegante chefe. Surpreendida, assustou-se a população. De logo correram os boatos e a apreensão era tamanha. Os cabras armados por todos os lados. Lampião tocando na sanfona de Raimundo do Pico. Vindo de Vila Bela especialmente para a ocasião, chega o padre José Kehrle montado a cavalo e grande chapéu de palha na cabeça. Com a chegada do seu vigário, os cangaceiros, nos seus alegramentos, soltaram foguetes, salvando seu estimado amigo e conselheiro. Todos aproximaram-se pedindo a bênção, beijavam a mão do padre, que os abençoava e retribuía os cumprimentos, satisfeito e agradecido.

50 Confiado no apoio e no respeito que o vigário imprimia com sua presença na terra, Alfredo Ferreira de Lima, irmão da noiva, sentindo o ambiente reinante, fora ter com Lampião, fazendo-lhe ver que não ficava bem, num dia de festa como aquele, a sua vinda com o bando assim solto, acintosamente armado, e às bicadas em desde que chegaram. Meio agastado, Lampião olhou-o a fito com olhar desafiador e o dedo nas fuças do primo: “Deixe de bestage! Eu só tô vendo você acolhendo bandido de gravata, bandido encapado...” (Referia-se a determinadas “autoridades” que faziam - e fazem - muito pior que os cangaceiros). Entre os ânimos exaltados, tensões e discussões, as horas passavam com o padre José Kehrle acalmando a todos. Às quatro horas da tarde saiu o préstito nupcial para a igrejola, com muitos convidados fazendo par, exibindo a lordeza matuta e ladeados de alguns cangaceiros, respeitosos, chapéus na mão.

51 A noiva, como sempre, objeto máximo das atenções. Vestida de branco vuale suíço, comprido véu descendo da grinalda – um primor de capela com arranjos de flores de laranjeira de seda branca e botões de goma -, enfim toda linda, distribuindo sorrisos, uma graça de brejeirice... Após o casamento, durante a janta, na qual estavam presentes na casa da noiva seus parentes, os cangaceiros e o padre José, tendo Lampião sentado ao lado deste, que lhe tinha amizade e muito o admirava. Persistente aconselhava o padre: - “Deixe essa vida. Você não é para estar nesse bando. Você não é ovelha negra, desgarrada...” - Num tem jeito, não – respondia Lampião. Num quiseram assim? Mataram meus pais. Desmantelaram minha família e negócios. Querem me matar também. Vou até o fim... É o meu destino!” Apesar da tensão, “tudo correu na santa paz, graças a Deus” – dizia o vigário, na missa do dia seguinte, com todos presentes, inclusive os cangaceiros, que haviam deixado as armas do lado de fora da igreja, nos arrespeitos. Nesse quando, foi Lampião informado pelas suas sentinelas que havia uma cumandita de gente, lá longe na estrada! Lampião, mão em pala sobre a testa, buscando acomodar a vista, exclamou alteando as sobrancelhas: “É macaco!” A disgraceira estava feita! Nunca houve tanta gritaiage e correria do povo que se esbandaiava por todos os lados...

52 Lampião agindo com rapidez e eficiência, sempre se revelando autêntico comandante e seguro, imprimindo assim confiança aos seus, imediatamente apitou chamando o seu pessoal e deu as ordens para o combate iminente. De suas posições de combate dentro dos muros das casas, os cangaceiros furavam buracos enviesados na parede, formando assim “torneiras”, onde enfiavam o cano dos rifles para atirar. Rompeu tiroteio cerrado e violento, trancando o mundo... Partido do meio da rua, ouvia-se o toque guerreiro da “Mulher Rendeira”. Era Lampião, nos intervalos em que dirigia a luta e atirava também, com sua sanfona animando os cabras. Os cangaceiros, atirando de ponto, com seguridade, a cada vez que atingiam um macaco, que contrafeito de dor ficava fora de combate, largavam desadorada risadona de mangação: “Lá vai macaco da gota!”. A luta bem com quatro horas de duração continuava indecisa até que começaram a chegar mais volantes fechando o grupo em perigosíssimo cerco. Lampião compreendendo as posições inimigas, agora envolventes, com superioridade numérica e bélica, e temendo o esgotamento de sua munição, ordenou impetuosa esfuziada, a modo de, atarantando o inimigo e aproveitando o fumaceiro, a retirada ficar facilitada e garantida.

53 -“Cumpadre, foi tanto papoco no oco do mundo que – nunca vi! – o panavueiro cobria tudo! Maldei que tinha chegado o fim do mundo!...” Longe e ilesos os cangaceiros, a rua esborrava de soldados. A vítima principal naturalmente tinha de ser a família Ferreira ali domiciliada. Quem pôde fugiu, no seu animal ou a pé, ou se escondeu. A situação agora era pior do que a anterior, pois estava sob o guante da autoridade, despótica, absoluta, oficial. De todo jeito, porém, aquele povo, pobre e sacrificado, humilde e abandonado, teve que pagar, e muito caro, uma dívida estranha: almoço com bebida e tudo mais para tanto soldado!... Guarnecendo o vilarejo contra uma daquelas possíveis e perigosas surtidas de Lampião, a soldadesca, refestelada e quente, de entusiasmo cantava – coisa curiosa! – “Mulher Rendeira”, como se fosse essa canção o hino oficial comum daqueles sertões sangrentos!... Consumou-se, desse dia em diante, definitiva intriga entre Lampião e os nazarenos, com diversos tiroteios e mortes de ambos os lados inimigos.

54 Notas 1.Macaco é o apelido dado por Lampião ao soldado de polícia de vez que os mesmos tinham um cheiro acre e fétido próprio do macaco. Outro motivo do apelido: o modo como os soldados fugiam, pulando desengonçados quiném os símios correndo pelo chão. 2. Estrada “real”, carroçável, sem nivelamento, cheia de catabis, sem largura uniforme, antes um caminho mais espaçoso para dar passagem ao carro de boi, ao automóvel e ao caminhão.


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