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Panorama da literatura brasileira antes de Machado

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Apresentação em tema: "Panorama da literatura brasileira antes de Machado"— Transcrição da apresentação:

1 Panorama da literatura brasileira antes de Machado
Período colonial Renascimento (cronistas) Barroco (Gregório de Matos) Iluminismo / Inconfidência mineira Império – democracia oligárquica Romantismo Realismo / parnasianismo Simbolismo naturalismo

2 Domingos José Gonçalves de Magalhães, primeiro e único barão e visconde do Araguaia, (Rio de Janeiro, 13 de agosto de 1811 – Roma, 10 de julho de 1882) Suspiros poéticos e saudades, poesia (1836) — considerada a obra inaugural do romantismo brasileiro Discurso sobre a história da literatura do Brasil, manifesto publicado na revista Nictheroy (1836) Antônio José ou O poeta e a Inquisição, peça de teatro (1838) A confederação dos Tamoios, poema épico (1856) Os mistérios, poesias (1857)

3 Luís Carlos Martins Pena (Rio de Janeiro, 5 de novembro de 1815 — Lisboa, 7 de dezembro de 1848) foi dramaturgo, diplomata e introdutor da comédia O Diletante (representada em 25/02/1845 e publicada em 1846) O Cigano (representada em 15/07/1845) Os meirinhos (representada em 14/02/1846) Um segredo de estado (representada em 29/07/1846) O caixeiro da taverna (representada em 18/11/1845) Os irmãos das almas (representada em 17/11/1844) As Casadas Solteiras (representada em 18/11/1845) Quem casa, quer casa, provérbio em 1 ato (representada em 05/12/1845)

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5 Caricatura de Joaquim Manuel de Macedo sendo consolado pelo mascote da revista Semana Illustrada

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10 Obras de Machado de Assis
Memórias Póstumas de Brás Cubas, romance, 1881 Tu, Só Tu, Puro Amor, teatro, 1881 Papéis Avulsos, contos, 1882 O Alienista, conto, 1882 Histórias Sem Data, contos, 1884 Páginas Recolhidas, contos, 1889 Quincas Borba, romance, 1891 Várias Histórias, contos, 1896 Dom Casmurro, romance, 1899 Poesias Completas, 1901 Esaú e Jacó, romance, 1904 Relíquias da Casa Velha, contos, 1906 Memorial de Aires, romance, 1908 Desencanto, teatro, 1861 Queda que as mulheres têm pelos Tolos, teatro, 1861 Quase Ministro, teatro, 1864 Crisálidas, poesia, 1864 Os Deuses de Casaca, teatro, 1866 Contos Fluminenses, conto, 1870 Falenas, poesia, 1870 Ressurreição, romance, 1872 História da Meia Noite, contos, 1873 A Mão e a Luva, romance, 1874 Americanas, poesia, 1875 Helena, romance, 1876 Iaiá Garcia, romance, 1878

11 A palmeira (1855) Esta palmeira gigante Que se eleva sobre o monte!
Como é linda e verdejante Esta palmeira gigante Que se eleva sobre o monte! Como seus galhos frondosos S’elevam tão majestosos Quase a tocar no horizonte! Ó palmeira, eu te saúdo, Ó tronco valente e mudo, Da natureza expressão! Aqui te venho ofertar Triste canto, que soltar Vai meu triste coração. Sim, bem triste, que pendida Tenho a fronte amortecida, Do pesar acabrunhada! Sofro os rigores da sorte, Das desgraças a mais forte Nesta vida amargurada! Como tu amas a terra Que tua raiz encerra, Com profunda discrição; Também amei da donzela Sua imagem meiga e bela, Que alentava o coração. Como ao brilho purpurino Do crepúsc’lo matutino Da manhã o doce albor; Também amei com loucura Ess’alma toda ternura Dei-lhe todo o meu amor! Amei!... mas negra traição Perverteu o coração Dessa imagem da candura! Sofri então dor cruel, Sorvi da desgraça o fel, Sorvi tragos d’amargura! Adeus, palmeira! ao cantor Guarda o segredo de amor; Sim, cala os segredos meus! Não reveles o meu canto, Esconde em ti o meu pranto Adeus, ó palmeira!... adeus!

12 Três tesouros perdidos (1858)
Uma tarde, eram quatro horas, o Sr. X... voltava à sua casa para jantar. O apetite que levava não o fez reparar em um cabriolet que estava parado à sua porta. Entrou, subiu a escada, penetra na sala e... dá com os olhos em um homem que passeava a largos passos como agitado por uma interna aflição.  Cumprimentou-o polidamente; mas o homem lançou-se sobre ele e com uma voz alterada, diz-lhe: — Senhor, eu sou F..., marido da senhora Dona E...  — Estimo muito conhecê-lo, responde o Sr. X...; mas não tenho a honra de conhecer a senhora Dona E...  — Não a conhece! Não a conhece! ... quer juntar a zombaria à infâmia?  — Senhor!...  E o Sr. X... deu um passo para ele.  — Alto lá!  O Sr. F... , tirando do bolso uma pistola, continuou:  — Ou o senhor há de deixar esta corte, ou vai morrer como um cão!  — Mas, senhor, disse o Sr. X., a quem a eloqüência do Sr. F... tinha produzido um certo efeito: que motivo tem o senhor...  — Que motivo! É boa! Pois não é um motivo andar o senhor fazendo a corte à minha mulher?  — A corte à sua mulher! não compreendo!

13 — Não compreende. oh. não me faça perder a estribeira
— Não compreende! oh! não me faça perder a estribeira. — Creio que se engana... — Enganar-me! É boa! ... mas eu o vi... sair duas vezes de minha casa... — Sua casa! — No Andaraí... por uma porta secreta... Vamos! ou... — Mas, senhor, há de ser outro, que se pareça comigo... — Não; não; é o senhor mesmo... como escapar-me este ar de tolo que ressalta de toda a sua cara? Vamos, ou deixar a cidade, ou morrer... Escolha! Era um dilema. O Sr. X... compreendeu que estava metido entre um cavalo e uma pistola. Pois toda a sua paixão era ir a Minas, escolheu o cavalo. Surgiu, porém, uma objeção. — Mas, senhor, disse ele, os meus recursos... — Os seus recursos! Ah! tudo previ... descanse... eu sou um marido previdente. E tirando da algibeira da casaca uma linda carteira de couro da Rússia, diz-lhe: — Aqui tem dois contos de réis para os gastos da viagem; vamos, parta! parta imediatamente. Para onde vai? — Para Minas. — Oh! a pátria do Tiradentes! Deus o leve a salvamento... Perdôo-lhe, mas não volte a esta corte... Boa viagem! Dizendo isto, o Sr. F... desceu precipitadamente a escada, e entrou no cabriolet, que desapareceu em uma nuvem de poeira.

14 O Sr. X. ficou por alguns instantes pensativo
O Sr. X... ficou por alguns instantes pensativo. Não podia acreditar nos seus olhos e ouvidos; pensava sonhar. Um engano trazia-lhe dois contos de réis, e a realização de um dos seus mais caros sonhos. Jantou tranquilamente, e daí a uma hora partia para a terra de Gonzaga, deixando em sua casa apenas um moleque encarregado de instruir, pelo espaço de oito dias, aos seus amigos sobre o seu destino. No dia seguinte, pelas onze horas da manhã, voltava o Sr. F. para a sua chácara de Andaraí, pois tinha passado a noite fora. Entrou, penetrou na sala, e indo deixar o chapéu sobre uma mesa, viu ali o seguinte bilhete: — “ Meu caro esposo! Parto no paquete em companhia do teu amigo P... Vou para a Europa. Desculpa a má companhia, pois melhor não podia ser. — Tua E...”. Desesperado, fora de si, o Sr. F... lança-se a um jornal que perto estava: o paquete tinha partido às 8 horas. — Era P... que eu acreditava meu amigo... Ah! maldição! Ao menos não percamos os dois contos! Tornou a meter-se no cabriolet e dirigiu-se à casa do Sr. X..., subiu; apareceu o moleque. — Teu senhor? — Partiu para Minas. O Sr. F... desmaiou. Quando deu acordo de si estava louco... louco varrido! Hoje, quando alguém o visita, diz ele com um tom lastimoso: — Perdi três tesouros a um tempo: uma mulher sem igual, um amigo a toda prova, e uma linda carteira cheia de encantadoras notas... que bem podiam aquecer-me as algibeiras!... Neste último ponto, o doido tem razão, e parece ser um doido com juízo.

15 Ayres e Vergueiro (Publicado originalmente em Jornal das Famílias 1871 ) Era muito alva, cheia de corpo, assaz bonita e elegante, a esposa de Luís Vergueiro. Chamava- se Carlota. Contava 22 anos e parecia destinada a envelhecer muito tarde. Não sendo franzina, não tinha nenhuma ambição de parecer vaporosa, pelo que era dada à boa mesa, e detestava o princípio de que uma moça para parecer bonita deve comer pouco. Carlota comia sofrivelmente, mas em compensação só bebia água, uso que, na opinião do marido, era causa de se lhe não afoguearem as faces como convinha a uma beleza robusta. Reqüestada por muitos rapazes no ano da Maioridade, deu ela a preferência ao sr. Luís Vergueiro que, posto não fosse mais bonito que os outros, tinha qualidades que o punham muito acima de todos os rivais. Destes se podia dizer que os movia a ambição; tinham geralmente pouco mais que nada; Vergueiro não era assim. Iniciava um negociozinho de fazendas que lhe ia dando esperanças de enriquecer, ao passo que a amável Carlota apenas tinha aí uns dez contos, dote feito pelo padrinho. Caiu a escolha em Vergueiro, e o casamento foi celebrado com alguma pompa, sendo padrinhos um deputado maiorista e um coronel do tempo da revolução de Campos. Nunca houve casamento mais falado que aquele; a beleza da noiva, a multiplicidade dos rivais, a pompa da cerimônia, tudo deu que falar durante uns oito dias antes e depois, até que a vadiação do espírito público achou novo alimento. Vergueiro alugou a casa que ficava por cima da sua loja, e para lá levou a mulher, satisfazendo assim as obrigações públicas e privadas, consorciando facilmente a bolsa e o coração. A casa era na Rua de S. José. Daí a pouco tempo comprou a casa, e isto fez dizer que o casamento, longe de lhe pôr um cravo na roda da fortuna, veio antes ajudá-lo.

16 Tinha Vergueiro uma irmã casada no interior
Tinha Vergueiro uma irmã casada no interior. Morre-lhe o marido, e a irmã veio para o Rio de Janeiro onde foi recebida pelo irmão com todas as demonstrações de afeto. As duas cunhadas simpatizaram logo uma a outra, e esta presença de uma estranha (para recémcasados todos são estranhos) não alterou a felicidade doméstica do casal Vergueiro. Luísa Vergueiro não era bonita, mas tinha uma graça especial, uns modos todos seus, uma coisa que se não explica, e esse misterioso dom, essa qualidade indefinível encadeou para sempre o coração de Pedro Ayres, rapaz de trinta anos perfeitos, morador na vizinhança. Digam-lhe lá o que pode fazer uma pobre viúva ainda moça, que apenas esteve casada dois anos. Luísa não era da massa das Artemisas. Tinha chorado o esposo, e se tivesse talento, podia escrever uma excelente biografia dele, honrosa para ambos. Mas isso era tudo que se podia exigir dela; não possuía um túmulo no coração, possuía um ninho; e um ninho deserto é a coisa mais triste deste mundo. Não foi Luísa insensível aos olhares requebrados de Pedro Ayres, e serei justo dizendo que ocultou quanto pôde a impressão que o moço fazia nela. Ayres pertencia àquela raça de namoradores que não abatem armas logo à primeira resistência. Insistiu nos olhares entremeados com alguns sorrisos; chegou a interrogar miudamente um moleque da casa, cuja discrição não pôde resistir a uma moeda de prata. O moleque foi além; aceitou uma carta para a viuvinha. A viuvinha respondeu. Daqui em diante correram as coisas com aquela celeridade natural entre dois corações que se querem, que são livres, que não podem viver um sem o outro. Carlota percebeu o namoro, mas respeitou a discrição da cunhada, que nenhuma confissão lhe fez.

17 Vergueiro estava no extremo oposto da perspicácia humana; e além disso as suas ocupações não lhe davam tempo para perceber os namoros da irmã. Não obstante, sorriu complacentemente quando Carlota lhe disse o que sabia. — Pensas que eu ignoro isso? perguntou o marido brincando com a corrente do relógio. — Alguém to contou? perguntou a mulher. — Ninguém me contou nada, mas para que tenho eu olhos senão para ver o que se passa à roda de mim? Sei que esse rapaz anda cá a namorar a Luísa, estou a ver em que param as coisas. — É fácil de ver. — Casamento, não? — Que dúvida! Vergueiro coçou a cabeça. — Nesse caso, disse ele, acho bom indagar alguma coisa da vida do pretendente; pode ser algum tratante... — Eu já indaguei tudo. — Tu? Carlota passou-lhe os braços à roda do pescoço. — Eu, sim! As mulheres são curiosas; vi o Tobias entregar uma cartinha à Luísa; interroguei o Tobias, e ele disse-me que o rapaz é um moço sério e tem alguma coisa de seu. — Tem, tem, disse Vergueiro. Que achas? — Que os devemos casar. — Entende-te tu com ela, e conta-me o que souberes. — Bem.

18 Carlota cumpriu fielmente a ordem do marido, e Luísa nada lhe ocultou do que se passava em seu coração. — Queres então casar com ele? — Ele deseja isso mesmo. — E estão calados! Parecem-me aprendizes. Carlota era sincera no prazer que tinha em ver casada a irmã do marido, sem se preocupar com o resultado disso, que era tirar-lhe a companhia a que já se acostumara. Vergueiro refletiu na inconveniência de confiar nas informações de um moleque ignorante, que devia ter a respeito da probidade e da distinção idéias sumamente vagas. Para suprir esta inconveniência, lembrou-se de ir em pessoa falar com Pedro Ayres, e assentou que o faria no domingo próximo. A mulher aprovou a resolução, mas o pretendente cortou-lhe as vazas, indo ele mesmo no sábado à casa de Vergueiro, expor os seus desejos e títulos. Pedro Ayres era homem bem apessoado; tinha grandes suíças e um pequeno bigode. Vestia com certa elegância, e tinha os gestos desembaraçados. Algum severo juiz podia achar-lhe um inexplicável horror à gramática; mas nem Vergueiro, nem Carlota, nem Luísa, estavam em melhores relações com a mesma senhora, de maneira que este pequeno senão passou completamente despercebido. Ayres deixou a melhor impressão em toda a família. Desde logo ficou assentado que se esperasse algum tempo, a fim de completar o prazo do luto. Isso, porém, não embaraçou as vindas de Ayres à casa da noiva; começou indo lá três vezes por semana, e acabou indo todos os dias.

19 Ao cabo de poucas semanas, já Vergueiro dizia:
— Ó Ayres, queres mais açúcar? E Ayres respondia: — Dá cá mais um pouco, Vergueiro. Estreitou-se a amizade entre ambos. Eram necessários um para o outro. Quando Ayres não ia à casa de Vergueiro, este passava a noite mal. Ayres detestava o jogo; mas a amizade que tinha a Vergueiro bastou para que depressa aprendesse e jogasse o gamão, a ponto que chegou a vencer o mestre. Nos domingos, Ayres jantava com Vergueiro; e dividia a tarde e a noite entre o gamão e Luísa. As duas moças, longe de se zangarem com este namoro dos dois, pareciam contentes e felizes. Viam nisso uma fiança de futura concórdia. Um dia entrou Ayres na loja de Vergueiro e pediu- lhe uma conferência particular. — Que temos? disse Vergueiro. — Daqui a dois meses, respondeu Ayres, é o meu casamento; vou ficar indissoluvelmente ligado à tua família. Tive uma idéia... — Uma idéia tua deve ser excelente, observou Vergueiro abaixando o colete que havia fugido insolentemente do seu lugar. — Tenho uns contos de réis. Queres-me para sócio? Ligaremos deste modo o sangue e a bolsa. A resposta de Vergueiro foi menos circunspecta do que convinha em casos tais. Levantou-se e caiu nos braços do amigo, exatamente como faria um sujeito falido a quem lhe oferecessem uma tábua de salvação. Mas nem Ayres teve semelhante suspeita, nem acertaria se a tivesse. Vergueiro nutria pelo futuro cunhado um sentimento de entusiástica amizade, e achou naquela idéia um documento da afeição do outro.

20 No dia seguinte deram os passos necessários para organizar a sociedade, e dentro de pouco tempo foi chamado um pintor para traçar nos portais da loja estes dois nomes, já agora indissoluvelmente ligados: Ayres & Vergueiro. Vergueiro insistiu em que o nome do amigo estivesse antes do seu. No dia desta pintura, houve jantar em casa, e a ele assistiram algumas pessoas íntimas, todas as quais ficaram morrendo de amores pelo sócio de Vergueiro. Estou a ver o meu leitor aborrecido com esta singela narração de ocorrências prosaicas e vulgares, sem nenhum interesse romanesco, sem que apareça nem de longe a orelha de uma peripécia dramática. Tenha paciência. É verdade que, feita a sociedade, e casado o novo sócio, a vida de toda esta gente não poderá oferecer interesse nenhum que valha dois caracóis. Mas aqui intervém uma personagem nova, a qual vem destruir tudo o que o leitor pode imaginar. Não é só uma personagem; são duas, irmãs ambas poderosas: a Doença e a Morte. A doença entrou por casa de nosso amigo Vergueiro e prostrou na cama durante dois longos meses a viúva-noiva. Não se descreve o desespero de Ayres vendo o estado grave daquela a quem ele amava mais que tudo. Esta circunstância de ver o amigo desesperado, aumentou a dor de Vergueiro, que já devia sentir bastante com os padecimentos da irmã. Do que era a moléstia, divergiram os médicos; e todos eles com sólidas razões. O que não provocou nenhuma divergência da parte dos médicos, nem das pessoas da casa, foi o passamento da moça que se verificou às 4 horas da madrugada de um dia de setembro. A dor de Ayres foi tremenda; atirou-se ao caixão quando os convidados o vieram buscar para o coche, e não comeu um pedaço de pão durante três dias.

21 Vergueiro e Carlota recearam pela saúde e até pela vida do malfadado noivo, pelo que foi assentado que ele se mudaria para a casa de Vergueiro, onde seria vigiado de mais perto. Seguiu-se à expansão daquele imenso infortúnio um abatimento prolongado; mas a alma readquiriu as forças perdidas, e o corpo com ela se foi restabelecendo. No fim de um mês já o sócio de Vergueiro assistia ao negócio e dirigia a escrituração. Com verdade se diz que é nos grandes infortúnios que se conhecem as verdadeiras amizades. Ayres encontrou da parte do sócio e da mulher a mais sublime dedicação. Carlota foi para ele uma verdadeira irmã; ninguém levou mais longe e mais alto a solicitude. Ayres comia pouco; arranjou-lhe ela comidas próprias para lhe vencer o fastio. Conversava com ele longas horas, ensinava-lhe alguns jogos, lia-lhe o Saint Clair das Ilhas, aquela velha história de uns desterrados da ilha da Barra. Pode-se afiançar que a dedicação de Carlota foi o principal medicamento que restituiu à vida o nosso Pedro Ayres. Vergueiro aplaudia in petto o procedimento de sua mulher. Quem meu filho beija, minha boca adoça, diz um adágio; Vergueiro tinha para com o sócio extremos de pai; tudo o que se fizesse ao Ayres, era agradecido por ele do fundo da sua grande alma. Nascida da simpatia, criada no infortúnio comum, a amizade de Ayres e Vergueiro assumiu as proporções do ideal. Na vizinhança, já ninguém recorria às expressões proverbiais para significar uma amizade íntima; não se dizia de dois amigos: são unha e carne; dizia-se: Ayres com Vergueiro. Diógenes teria achado ali um homem, e realmente ambos formavam uma só criatura.

22 Nunca mais sucedeu andarem com roupa de cor, fazenda ou feitio diferentes; vestiam-se igualmente, como se até nisso quisessem mostrar a perpétua aliança de suas nobres almas. Faziam mais: compravam chapéus e sapatos no mesmo dia, ainda que um deles os houvesse estragado menos que o outro. Jantar, baile ou passeio a que um fosse havia de ir o outro por força, e ninguém se animava a convidá-los separadamente. Não eram, pois, dois sócios simples que procuravam dos seus esforços juntos obter cada qual a sua riqueza. Não. Eram dois amigos íntimos, dois corações iguais, dois irmãos siameses, eternamente vinculados na terra, labutando para alcançar os bens da sorte, mas sem nenhuma idéia de os separarem jamais. E a fortuna os ajudou, por maneira que dentro de dois anos já havia idéia de liquidar o negócio, e irem os dois e mais Carlota viver tranqüilamente em uma fazenda, comendo o ganhado na graça de Deus e pleno esquecimento dos homens. Que mau demônio, que ruim espírito veio meter-se entre eles para lhes impedir esta excelente idéia? A fortuna varia como a mulher; depois de os haver favorecido, começou a desandar. Meteram-se eles em negócios arriscados e perderam alguma coisa. Todavia ainda tinham um bom pecúlio. — Vamos liquidar? perguntou um dia Ayres a Vergueiro. — Vamos.

23 Inventariaram as fazendas, cotejaram o seu valor com a soma das dívidas, e repararam que, se pagassem integralmente aos credores, ficariam com uma soma mesquinha para ambos. — Continuemos o negócio, disse Ayres; trabalharemos até resgatarmos a antiga posição. — Justo... mas eu tenho uma idéia, disse Vergueiro. — E eu tenho outra, respondeu o sócio. Qual é a tua? — Dir-ta-ei domingo. — E eu comunicarei nesse mesmo dia a minha idéia, e veremos qual delas serve, ou se se combinam ambas. Seria coisa extremamente nova, e até certo ponto digna de pasmo, que aqueles modelos da verdadeira amizade tivessem idéias divergentes. A idéia anunciada para o domingo seguinte era a mesmíssima idéia, tanto no cérebro de Ayres, como no de Vergueiro. Consistia em liquidar à sorrelfa: iriam vendendo pouco a pouco as fazendas, e sairiam da corte sem dizer adeus aos credores. A idéia não era original; bonita parece que também não; mas era útil e praticável. Ficou assentado que esta resolução não seria comunicada à mulher de Vergueiro. — Reconheço, dizia Ayres, que é uma senhora de alta prudência e rara discrição... — Não tem dúvida. — Mas o espírito das senhoras é cheio de alguns escrúpulos, e se ela nos fosse à mão, tudo ficaria perdido. — Estava pensando a mesma coisa, observou Vergueiro.

24 Concordes na promessa, não menos o foram na infidelidade
Concordes na promessa, não menos o foram na infidelidade. No dia seguinte, Ayres ia comunicar confidencialmente o plano à esposa de Vergueiro, e começou a dizer: — Nós vamos liquidar aos poucos... — Já sei, respondeu Carlota, ele já me disse tudo. Façamos justiça a esta distinta moça; depois de tentar dissuadir o marido do projeto, tentou dissuadir o sócio, mas tanto um como o outro ostentaram uma tenacidade de ferro em suas opiniões. Divergiam no modo de encarar a questão. Vergueiro não contestava a imoralidade do ato, mas achava que o benefício compensava a imoralidade; reduziu a dissertação a esta expressão popular: ande eu quente e ria-se a gente. Ayres não admitia que o projeto ofendesse as leis da moral. Ele começava separando a moral e o dinheiro. O dinheiro é coisa de si tão mesquinha, que não podia penetrar na região sublime da moral. — Deus, observava ele, não quer saber quanto pesam as algibeiras, quer saber quanto pesam as almas. Que importa que as nossas algibeiras estejam pejadas de dinheiro, contanto que as nossas almas estejam leves de pecados? Deus olha para as almas, não olha para as algibeiras. Carlota alegou triunfalmente um dos dez mandamentos da lei de Deus; mas o sócio de Vergueiro fez uma tão complicada interpretação do texto bíblico, e falou com tanta convicção, que o espírito de Carlota não achou resposta suficiente, e aqui parou a discussão. A que se não acostuma o coração humano? Lançada a má semente no coração da moça, depressa germinou, e o plano secreto passou a ser assunto de conversa entre os três conjurados.

25 A execução do plano começou e prosseguiu com espantosa felicidade
A execução do plano começou e prosseguiu com espantosa felicidade. A firma Ayres & Vergueiro era tão honrada, que os portadores de letras e outros títulos, e até os que não tinham títulos, foram aceitando todas as delongas que os dois sócios lhes pediam. As fazendas começaram a ser vendidas a resto de barato, não por anúncio, o que seria dar na vista, mas por informação particular que passava de boca em boca. Nestas e noutras ocupações se abismava o saudoso espírito de Pedro Ayres, já agora deslembrado da desditosa Luísa. Que querem? Nada é eterno neste mundo. Nada liga mais fortemente os homens que o interesse; a cumplicidade dos dois sócios apertou os vínculos da sua proverbial amizade. Era ver como eles delineavam entre si o plano da vida que os esperava quando estivessem fora do Império. Protestavam gozar do dinheiro sem recorrer às alternativas do comércio. Além dos prazeres comuns, Vergueiro possuía os do coração. — Tenho Carlota, dizia ele, que é um anjo. E tu, meu Ayres? Por que te não casarás também? Ayres desatou do peito um suspiro e disse com voz trêmula: — Casar? Que mulher há mais neste mundo que possa fazer a minha felicidade? Ditas estas palavras com outra sintaxe que eu não reproduzo por vergonha, o desditoso Ayres sufocou dois ou três soluços e fitou os olhos no ar; depois coçou o nariz e olhou para Vergueiro: — Olha, eu não me considero solteiro; não importa que tua irmã morresse; estou casado com ela; separa-nos apenas o túmulo.

26 Vergueiro apertou com entusiasmo as mãos do sócio e aprovou a nobreza daqueles sentimentos.
Quinze dias depois desta conversa, Vergueiro chamou Ayres e disse que era necessário pôr termo ao plano. — É verdade, disse Ayres, as fazendas estão quase todas vendidas. — Subamos. Subiram e foram ter com Carlota. — Vou para Buenos Aires, começou Vergueiro. Carlota empalideceu. — Para Buenos Aires? perguntou Ayres. — Crianças! exclamou Vergueiro, deixem-me acabar. Vou para Buenos Aires com o pretexto de negócios comerciais; vocês demoram-se aqui um a dois meses; vendem o resto, põem o dinheiro a bom recado, e partem para lá. Que lhes parece? — A idéia não é má, observou Ayres, mas está incompleta. — Como? — A nossa ida deve ser pública, explicou Ayres; eu declararei a todos que tu estás doente em Buenos Aires e que mandas buscar tua mulher. Como alguém há de acompanhá-la, irei eu, prometendo voltar daí a um mês; a casa fica aí com o caixeiro, e... o resto... creio que não preciso dizer o resto. — Sublime! exclamou Vergueiro; isto é que se chama estar adiante do século. Assentado isto, anunciou aos amigos e credores que uma operação comercial o levava ao Rio da Prata; e tomando passagem no brigue Condor deixou para sempre as plagas da Guanabara.

27 Não direi aqui as saudades que sentiram aqueles dois íntimos amigos, quando se separaram, nem as lágrimas que verteram, lágrimas dignas de inspirar mais adestradas penas do que a minha. A amizade não é um nome vão. Carlota não menos sentiu aquela separação, posto fosse de pequeno prazo. Os amigos da firma Ayres & Vergueiro viram bem o que era um quadro de verdadeira afeição. Ayres não era pêco, apressou a venda das fazendas, realizou em boa prata o dinheiro da caixa, e antes de seis semanas recebeu de Buenos Aires uma carta em que Vergueiro dizia que estava de cama, e pedia a presença de sua querida mulher. A carta terminava assim: “Quem escreve esta é o criado da hospedaria onde eu me acho; apenas tenho forças para deitar-lhe a minha assinatura.” O plano era excelente, e Vergueiro, lá em Buenos Aires, esfregava as mãos de prazer saboreando os aplausos que receberia do amigo e sócio pela idéia de disfarçar a letra. Ayres aplaudiu efetivamente a idéia, e não menos a aplaudiu a amável Carlota. Determinaram, entretanto, não sair com a publicidade assentada no primeiro plano, em vista da qual o sagaz Vergueiro escrevera a referida carta. Talvez mesmo já esse projeto fosse anterior. O certo é que daí a dez dias, Ayres, Carlota e o dinheiro saíram furtivamente... para a Europa.

28 Astúcias de um marido (fim do 1° capítulo) Aqui devo eu fazer notar aos leitores desta história, como ela vai seguindo suave e honestamente, e como os meus personagens se parecem com todos os personagens de romance: um velho maníaco; uma velha impertinente, e amante platônica do passado; uma moça bonita apaixonada por um primo, que eu tive o cuidado de fazer pobre para dar-lhe maior relevo, sem, todavia, decidir-me a fazê-lo poeta, em virtude de acontecimentos que se hão de seguir; um pretendente rico e elegante, cujo amor é aceito pelo pai, mas rejeitado pela moça; enfim, os dois amantes à borda de um abismo condenados a não verem coroados os seus legítimos desejos, e ao fundo do quadro um horizonte enegrecido de dúvidas e de receios. Depois disto, duvido que um só dos meus leitores não me acompanhe até o fim desta história, que, apesar de tão comum ao princípio, vai ter alguma coisa de original lá para o meio. Mas como convém que não vá tudo de uma assentada, eu dou algum tempo para que o leitor acenda um charuto, e entro então no segundo capítulo. Contos Completos, de Machado de Assis, vol. I, Juiz de Fora: Ed. UFJF, Publicado originalmente em Jornal das Famílias, de 10/1866 a 11/1866.

29 Lua-de-mel! Há sempre uma lua-de-mel em todos os casamentos, não a houve no casamento de Valentim. O pobre noivo viu na reserva de Clarinha um acanhamento natural do estado em que ia entrar; mas desde que, passados os primeiros dias, a moça não saía do mesmo propósito, Valentim concluiu que havia enguia na erva. (início do cap. III) O autor desta novela não se viu ainda em situação igual, nem também caiu num poço de cabeça para baixo, mas acredita que a impressão deve ser absolutamente a mesma. Valentim fez o seguinte raciocínio: — Se Clarinha não me ama é que ama alguém; esse alguém talvez não me valha, mas tem sobre mim a grande vantagem de ser preferido. Ora, esse alguém quem é? Desde então a questão de Otelo entrou no espírito de Valentim e fez cama aí: ser ou não ser amado, tal era o problema do infeliz marido. Amar uma mulher moça, bela, adorável e adorada; ter a subida glória de possuí-la de poucos dias, à face da igreja, à face da sociedade; viver por ela e para ela; mas ter ao mesmo tempo a certeza de que diante de si não existe mais do que o corpo frio e insensível, e que a alma vagueia em busca da alma do outro; transformar-se ele, noivo e amante, em objeto de luxo, em simples pessoa oficial, sem um elo do coração, sem uma centelha de amor que lhe dê a posse inteira daquela que ama, tal era a miseranda e dolorosa situação de Valentim. Como homem de espírito e de coração, o rapaz compreendeu a sua situação. Negá-la era absurdo, confessá-la no interior era ganhar metade do caminho, porque era saber o terreno que pisava. Valentim não se deteve em suposições vãs; assegurou-se da verdade e tratou de descobri-la.

30 Valentim conhecia a vida; metade por ciência, metade por intuição
Valentim conhecia a vida; metade por ciência, metade por intuição. Tinha lido o Tratado de paz com os homens, de Nicole, e reteve estas duas condições a que o filósofo de Port Royal reduz o seu sistema: não opor-se às paixões, não contrariar as opiniões. O pai de Clarinha era doido pelo xadrez e não via salvação fora do partido conservador; Valentim fustigava os liberais e acompanhava o velho na estratégia do rei e dos elefantes. Uma tia da moça detestava o império e a constituição, chorava pelos minuetos da corte e ia sempre resmungando ao teatro lírico; Valentim contrafazia-se no teatro, dançava a custo uma quadrilha e tecia loas ao regime absoluto. Enfim, um primo de Clarinha mostrava-se ardente liberal e amigo das polcas; Valentim não via nada que valesse uma polca e um artigo do programa liberal. Graças a este sistema era amigo de todos e tinha seguro o bom agasalho. Mas daqui resultavam algumas cenas divertidas. Por exemplo, o velho surpreendia às vezes uma conversa entre Ernesto (o sobrinho) e Valentim a respeito de política: ambos coroavam a liberdade. — Que é isso, meu caro? Então segue as opiniões escaldadas de Ernesto? — Ah! respondia Valentim. — Dar-se-á caso que também pertença ao partido liberal? — Sou, mas não sou... — Como assim? perguntava Ernesto. — Quero dizer, não sou mas sou... Aqui Valentim tomava a palavra e fazia um longo discurso tão bem deduzido que contentava as duas opiniões. Dizem que é isto uma qualidade para ser ministro. (cap. I)

31 Ressurreição (1872) é a história de um casamento bom para todos, que não se realiza devido aos ciúmes infundados do noivo. Nos três romances seguintes, trata-se da desigualdade social. As heroínas são moças nascidas abaixo do seu merecimento, e tocará às famílias abastadas elevá-las, reparando o “equívoco” da natureza. A questão é tratada no limite da grosseria, em A mão e A luva (1874); na perspectiva da suscetibilidade em Helena (1876), e com muito desencanto em Iaiá Garcia (1878). A despeito desta evolução o denominador comum dos quatros livros é a afirmação enfática da conformidade social, moral e familiar que orienta a reflexão sobre os destinos individuais. (Roberto SCHWARZ , in BOSI, Alfredo ( org.) Machado de Assis. Textos dele e sobre ele. São Paulo: Ática, 1982, p. 412) Entre as figuras femininas machadianas é freqüente a presença de mulheres envolvidas numa aura de quase martírio, concebidas pelo escritor silenciosas, conformadas, dotadas de ‘virtudes’, ‘pudor’, ‘recato’, e imbuídas do dever de manter os conceitos de ‘decoro’ e ‘paz doméstica’. [...] A necessidade de preservação da paz doméstica é referida repetida e explicitamente: Lívia ( Ressurreição ), como vimos, arrepende-se de ter perturbado a ‘paz doméstica’ao tentar explicar ao marido sua concepção de amor. Estela ( Iaiá Garcia) decide silenciar diante de Luís Garcia, seu marido, sobre o antigo amor recíproco entre Jorge e ela. Assim, fazendo, acha, ‘salva-se a paz doméstica, e era o essencial’, A própria Iaiá ( Iaiá Garcia) imagina ouvir um conselho superior para conquistar Jorge e afastá-lo da madrasta Estela, quando desconfia de que esta o ama: ‘Prossegue a tua obra; sacrifica-te; salva a paz doméstica’. (Ingrid STEIN, Figuras femininas em Machado, 1984: 64 )

32 Em Helena adquire o escritor desenvoltura e fluência e vão reportando aqui e ali as soluções estilísticas, o modo próprio de dizer que o distingue de todos. Certas frases já adotaram o torneado de sabor clássico tão característico da sua língua. [...] Esses retoques estilísticos vão atenuando o Romantismo, e emprestando um interesse lateral, que vem do comentário à ação e aos tipos, e supera a atração difusa e enfadonha das cenas, dos diálogos e das citações. (Afrânio COUTINHO, 1959, p. 142 ) Em Iaiá Garcia, o escritor já adquire uma certa desenvoltura e fluência, e vão reportando aqui e ali as soluções estilísticas, o modo próprio de dizer que o distingue de todos. Certas frases já adotaram o torneado de sabor clássico característico de sua língua, e de sua ironia e de seu sutil sarcasmo. (COUTINHO, 1959, p. 142) O retrato que fornece Machado da sociedade de seu tempo: as condições da família patriarcal, impondo as conveniências sociais aos direitos do amor nos casamentos forçados, ´complicação do natural com o social`; os reflexos psicológicos e sociais das condições criadas pela escravidão; as repercussões da guerra externa; os costumes políticos da época, os problemas financeiros, o espírito crítico ligado à renovação cultural provocada pelo Positivismo e Naturalismo na década de 1870, em consonância com o movimento de afirmação da consciência literária nacional e as fortes influências pela qual estava passando a Literatura e o pensamento filosófico da época mexeu com a visão de mundo e com concepção de literatura de alguns escritores, dentre eles, Machado de Assis. (Afrânio Coutinho 1966, Estudo Introdutório sobre Machado de Assis, p.35)

33 Ressurreição – os personagens:
Dr. Félix – médico que vivia sem trabalhar; honesto, fraco e desconfiado em relação ao amor. Apaixona-se por Lívia, mas não consegue se mostrar confiante. Talvez seja incapaz de fazer a amada feliz e transfere para esta suas frustrações. Viana - um homem franco e hospedeiro; rude, mas serviçal. Doutor Meneses - boa alma, compassivo, generoso e sincero. Apaixona-se por Lívia, mas sublima tal amor e se casa com Raquel. Lívia – viúva, bonita e sedutora. Tem um filho chamado Luis e mostra no final, a maturidade da certeza e, mesmo se dilacerando, prova que, para amar, tem que ter maturidade. Rachel - angélica, formas graciosas, altruísta e boa alma. Casa-se com Meneses, sublima o antigo amor por Félix. Talvez um amor platônico. Dr. Batista - observador perspicaz e invejoso. Causador da separação de Lívia e Félix.

34 Obra Completa, Machado de Assis, Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1872. Ressurreição ADVERTÊNCIA DA NOVA EDIÇÃO Este foi o meu primeiro romance, escrito aí vão muitos anos. Dado em nova edição, não lhe altero a composição nem o estilo, apenas troco dois ou três vocábulos, e faço tais ou quais correções de ortografia. Como outros que vieram depois, e alguns contos e novelas de então, pertence à primeira fase da minha vida literária. M. DE A

35 ADVERTÊNCIA DA PRIMEIRA EDIÇÃO
Não sei o que deva pensar deste livro; ignoro sobretudo o que pensará dele o leitor. A benevolência com que foi recebido um volume de contos e novelas, que há dois anos publiquei, me animou a escrevê-lo. É um ensaio. Vai despretensiosamente às mãos da crítica e do público, que o tratarão com a justiça que merecer. A crítica desconfia sempre da modéstia dos prólogos, e tem razão. Geralmente são arrebiques de dama elegante, que se vê ou se crê bonita, e quer assim realçar as graças naturais. Eu fujo e benzo-me três vezes quando encaro alguns desses prefácios contritos e singelos, que trazem os olhos no pó da sua humildade, e o coração nos píncaros da sua ambição. Quem só lhes vê os olhos, e lhes diz verdade que amargue, arrisca-se a descair no conceito do autor, sem embargo da humildade que ele mesmo confessou, e da justiça que pediu. Ora pois, eu atrevo-me a dizer à boa e sisuda crítica, que este prólogo não se parece com esses prólogos. Venho apresentar-lhe um ensaio em gênero novo para mim, e desejo saber se alguma qualidade me chama para ele, ou se todas me faltam, — em cujo caso, como em outro campo já tenho trabalhado com alguma aprovação, a ele volverei cuidados e esforços. O que eu peço à crítica vem a ser — intenção benévola, mas expressão franca e justa. Aplausos, quando os não fundamenta o mérito, afagam certamente o espírito e dão algum verniz de celebridade; mas quem tem vontade de aprender e quer fazer alguma coisa, prefere a lição que melhora ao ruído que lisonjeia.

36 No extremo verdor dos anos presumimos muito de nós, e nada, ou quase nada, nos parece escabroso ou impossível. Mas o tempo, que é bom mestre, vem diminuir tamanha confiança, deixando-nos apenas a que é indispensável a todo o homem, e dissipando a outra, a confiança pérfida e cega. Com o tempo, adquire a reflexão o seu império, e eu incluo no tempo a condição do estudo, sem o qual o espírito fica em perpétua infância. Dá-se então o contrário do que era dantes. Quanto mais versamos os modelos, penetramos as leis do gosto e da arte, compreendemos a extensão da responsabilidade, tanto mais se nos acanham as mãos e o espírito, posto que isso mesmo nos esperte a ambição, não já presunçosa, senão refletida. Esta não é talvez a lei dos gênios, a quem a natureza deu o poder quase inconsciente das supremas audácias; mas é, penso eu, a lei das aptidões médias, a regra geral das inteligências mínimas. Eu cheguei já a esse tempo. Grato às afáveis palavras com que juízes benévolos me têm animado, nem por isso deixo de hesitar, e muito. Cada dia que passa me faz conhecer melhor o agro destas tarefas literárias, — nobres e consoladoras, é certo, — mas difíceis quando as perfaz a consciência.

37 Minha idéia ao escrever este livro foi pôr em ação aquele pensamento de Shakespeare:
Our doubts are traitors, And make us lose the good we oft might win, By fearing to attempt. Não quis fazer romance de costumes; tentei o esboço de uma situação e o contraste de dois caracteres; com esses simples elementos busquei o interesse do livro. A crítica decidirá se a obra corresponde ao intuito, e sobretudo se o operário tem jeito para ela. É o que lhe peço com o coração nas mãos. M. A

38 CAPÍTULO PRIMEIRO / NO DIA DE ANO BOM
Naquele dia, — já lá vão dez anos! — o Dr. Félix levantou-se tarde, abriu a janela e cumprimentou o sol. O dia estava esplêndido; uma fresca bafagem do mar vinha quebrar um pouco os ardores do estio; algumas raras nuvenzinhas brancas, finas e transparentes se destacavam no azul do céu. Chilreavam na chácara vizinha à casa do doutor algumas aves afeitas à vida semi-urbana, semi-silvestre que lhes pode oferecer uma chácara nas Laranjeiras. Parecia que toda a natureza colaborava na inauguração do ano. Aqueles para quem a idade já desfez o viço dos primeiros tempos, não se terão esquecido do fervor com que esse dia é saudado na meninice e na adolescência. Tudo nos parece melhor e mais belo, — fruto da nossa ilusão, — e alegres com vermos o ano que desponta, não reparamos que ele é também um passo para a morte. Teria esta última idéia entrado no espírito de Félix, ao contemplar a magnificência do céu e os esplendores da luz? Certo é que uma nuvem ligeira pareceu toldar-lhe a fronte. Félix embebeu os olhos no horizonte e ficou largo tempo imóvel e absorto, como se interrogasse o futuro ou revolvesse o passado. Depois, fez um gesto de tédio, e parecendo envergonhado de se ter entregue à contemplação interior de alguma quimera, desceu rapidamente à prosa, acendeu um charuto, e esperou tranqüilamente a hora do almoço.

39 Félix entrava então nos seus trinta e seis anos, idade em que muitos já são pais de família, e alguns homens de Estado. Aquele era apenas um rapaz vadio e desambicioso. A sua vida tinha sido uma singular mistura de elegia e melodrama; passara os primeiros anos da mocidade a suspirar por coisas fugitivas, e na ocasião em que parecia esquecido de Deus e dos homens, caiu-lhe nas mãos uma inesperada herança, que o levantou da pobreza. Só a Providência possui o segredo de não aborrecer com esses lances tão estafados no teatro. Félix conhecera o trabalho no tempo em que precisava dele para viver; mas desde que alcançou os meios de não pensar no dia seguinte, entregou-se corpo e alma à serenidade do repouso. Mas entenda-se que não era esse repouso aquela existência apática e vegetativa dos ânimos indolentes; era, se assim me posso exprimir, um repouso ativo, composto de toda a espécie de ocupações elegantes e intelectuais que um homem na posição dele podia ter. Não direi que fosse bonito, na significação mais ampla da palavra; mas tinha as feições corretas, a presença simpática, e reunia à graça natural a apurada elegância com que vestia. A cor do rosto era um tanto pálida, a pele lisa e fina. A fisionomia era plácida e indiferente, mal alumiada por um olhar de ordinário frio, e não poucas vezes morto.

40 Do seu caráter e espírito melhor se conhecerá lendo estas páginas, e acompanhando o herói por entre as peripécias da singelíssima ação que empreendo narrar. Não se trata aqui de um caráter inteiriço, nem de um espírito lógico e igual a si mesmo; trata-se de um homem complexo, incoerente e caprichoso, em quem se reuniam opostos elementos, qualidades exclusivas e defeitos inconciliáveis. Duas faces tinha o seu espírito, e conquanto formassem um só rosto, eram todavia diversas entre si, uma natural e espontânea, outra calculada e sistemática. Ambas, porém, se mesclavam de modo que era difícil discriminálas e defini-las. Naquele homem feito de sinceridade e afetação tudo se confundia e baralhava. Um jornalista do tempo, seu amigo, costumava compará-la ao escudo de Aquiles — mescla de estanho e ouro, — "muito menos sólido", acrescentava ele. Aquele dia, aurora do ano, escolhera-o o nosso herói para ocaso de seus velhos amores. Não eram velhos; tinham apenas seis meses de idade. E contudo iam acabar sem saudade nem pena, não só porque já lhe pesavam, como também porque Félix lera pouco antes um livro de Henri Murger, em que achara um personagem com o sestro destas catástrofes prematuras. A dama dos seus pensamentos, como diria um poeta, recebia assim um golpe moral e literário.

41 Havia meia hora já que o doutor saíra da janela, quando lhe apareceu uma visita. Era um homem de quarenta anos, vestido com certo apuro, gesto ao mesmo tempo familiar e grave, estouvado e discreto. — Entre, Sr. Viana, disse Félix quando o viu aparecer à porta da sala. Vem almoçar comigo, já sei. — Esse é um dos três motivos da minha visita, respondeu Viana; mas afirmo-lhe que é o último. — Qual é o primeiro? — O primeiro, disse o recém-chegado, é dar-lhe o cumprimento de bons anos. Folgo que lhe corra este tão feliz como o passado. O segundo motivo é entregar-lhe uma carta do coronel. Viana tirou uma cartinha da algibeira e entregou-a ao doutor, que a leu rapidamente. — Creio que é um convite para o sarau de hoje? perguntou Viana quando o viu dobrar a carta. — É; transtorna-me um pouco, porque eu tencionava ir para a Tijuca. — Não caia nessa, acudiu Viana; eu era capaz de deixar todas as viagens do mundo só para não perder uma reunião do coronel; é um excelente homem, e dá boas festas. Vai? Félix hesitou algum tempo.

42 — Olhe que eu venho incumbido de lhe destruir todas as objeções que fizer, disse Viana.
— Não faço nenhuma. O convite transtorna-me o programa; mas, apesar disso, aceito. — Ainda bem! Um moleque veio dar parte de que o almoço estava na mesa. Viana descalçou as luvas e acompanhou o anfitrião. — Que novidades há? perguntou Félix sentando-se à mesa. — Nada que me conste, respondeu Viana imitando o dono da casa; o Rio de Janeiro vai a pior. — Sim? — É verdade; já não aparece um escândalo. Vivemos em completa abstinência, e chegou o reinado da virtude. Olhe, eu sinto a nostalgia da imoralidade. Viana era um homem essencialmente pacato com a mania de parecer libertino, mania que lhe resultava da freqüência de alguns rapazes. Era casto por princípio e temperamento. Tinha a libertinagem do espírito, não a das ações. Fazia o seu epigrama contra as reputações duvidosas, mas não era capaz de perder nenhuma. E, todavia, teria um secreto prazer se o acusassem de algum delito amoroso, e não defenderia com extremo calor a sua inocência, contradição que parece algum tanto absurda, mas que era natural. Como Félix não lhe animasse a conversa no terreno em que ele a pôs, Viana entrou a elogiar-lhe os vinhos.

43 “Decidam lá os doutores da escritura qual destes dois amores é melhor, se o que vem de golpe, se o que invade a passo lento o coração. Eu por mim não sei decidir, ambos são amores, ambos têm suas energias. O de Félix parecia ter criado no silêncio uma força invencível.” (cap. VIII) “O amor de Félix era um gosto amargo, travado de dúvidas e suspeitas. Melindroso lhe chamara ela, e com razão; a mais leve folha de rosa o magoava. Um sorriso, um olhar, um gesto, qualquer coisa bastava para lhe turbar o espírito.” (idem) “Não se trata aqui de um caráter inteiriço, nem de um espírito lógico e igual a si mesmo; trata-se de um homem complexo, incoerente e caprichoso, em que se reuniam opostos elementos, qualidades exclusivas, e defeitos inconciliáveis.” (cap. I) “Aqui podia acabar o romance muito natural e sacramentalmente casando-se estes dois pares de corações e indo desfrutar a sua lua de mel em algum canto ignorado dos homens. Mas para isso, leitor impaciente, era necessário que a filha do coronel e o doutor Meneses se amassem, e eles não se amavam, nem se dispunham a isso.” (cap. XII)

44 A advertência é clara: na história que ora se inicia, a passagem do tempo e, por extensão, o próprio desenrolar da narrativa, não aponta para a resolução dos conflitos neste ou noutro mundo. Aqui, o tempo avança em direção ao nada. Esta é a percepção desiludida que o narrador apresenta ao seu interlocutor para, em seguida, levá-lo a questionar se essa seria também a percepção do personagem Félix. O narrador finge compartilhar com seu interlocutor e com o protagonista as mesmas ilusões, indicando que todos estão igualmente imersos num mundo de falsas aparências; mas logo em seguida denuncia o embuste ao afirmar que ele mesmo não se deixa enganar pela beleza e frescor do ano novo e ao sugerir que o leitor e Félix talvez se deixem levar pelos falsos esplendores. GUIMARÃES, Hélio Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século XIX. São Paulo: Nankin Editorial: Editora da Universidade de São Paulo, 2004, p. 128

45 A mão e a luva segundo romance do autor. Publicado em folhetim em 1874, encaixa-se no estilo de época com elementos devidos ao Romantismo e narra um caso de namoro complexo para os padrões burgueses. Guiomar, uma menina de 17 anos de idade, afilhada de uma baronesa, tem três pretendentes: Estevão (sentimental); Jorge (calculista); Luís Alves (ambicioso). Estevão a ama loucamente de forma pura e inocente. Jorge, sobrinho da baronesa deseja ascender socialmente e tem por Guiomar um amor “pueril e lascivo”. Com Luís Alves é diferente, ele só passa a admirar a moça com o decorrer do tempo, mas é um homem resolvido e ambicioso. Jorge tem o apoio da baronesa e de sua empregada inglesa, Mrs. Oswald e pede a mão de Guiomar. Luís Alves faz o mesmo no dia seguinte. A baronesa pede a Guiomar que se decida entre os dois e a moça escolhe Jorge para não ver a madrinha zangada, mas a baronesa sabe que o desejo da afilhada é casar-se com Luís Alves. Então, Guiomar e Luís Alves se casam. Jorge se conforma com a escolha da amada e Estevão sonha com seu suicídio durante o casamento. Entretanto, nada disso interrompe os planos do jovem e ambicioso casal que se unem felizmente

46 — Mas o que pretendes fazer agora?     
— Morrer.      — Morrer? Que idéia! Deixa-te disso, Estevão. Não se morre por tão pouco...      — Morre-se. Quem não padece estas dores não as pode avaliar. O golpe foi profundo, e o meu coração é pusilânime; por mais aborrecível que pareça a idéia da morte, pior, muito pior do que ela, é a de viver. Ah! tu não sabes o que isto é?      — Sei: um namoro gorado...      — Luís!      — ...E se em cada caso de namoro gorado morresse um homem, tinha já diminuído muito o gênero humano, e Maltus perderia o latim. Anda, sobe.      Estevão meteu a mão nos cabelos com um gesto de angústia; Luís Alves sacudiu a cabeça e sorriu. Achavam-se os dois no corredor da casa de Luís Alves, à Rua da Constituição, — que então se chamava dos Ciganos; — então, isto é, em 1853, uma bagatela de vinte anos que lá vão, levando talvez consigo as ilusões do leitor, e deixando-lhe em troca (usurários!) uma triste, crua e desconsolada experiência.      Eram nove horas da noite; Luís Alves recolhia-se para casa, justamente na ocasião em que Estevão o ia procurar; encontraram-se à porta. Ali mesmo lhe confiou Estevão tudo o que havia, e que o leitor saberá daqui a pouco, caso não aborreça estas histórias de amor, velhas como Adão, e eternas como o Céu. Os dois amigos demoraram-se ainda algum tempo no corredor, um a insistir com o outro para que subisse, o outro a teimar que queria ir morrer, tão tenazes ambos, que não haveria meio de os vencer, se a Luís não ocorresse uma transação. (Cap. I / O fim da carta)

47 Cursavam estes dois moços a academia de São Paulo, estando Luís Alves no quarto ano e Estevão no terceiro. Conheceram-se na academia, e ficaram amigos íntimos, tanto quanto podiam sê-lo dois espíritos diferentes, ou talvez por isso mesmo que o eram. Estevão, dotado de extrema sensibilidade, e não menor fraqueza de ânimo, afetuoso e bom, não daquela bondade varonil, que é apanágio de uma alma forte, mas dessa outra bondade mole e de cera, que vai à mercê de todas as circunstâncias, tinha, além de tudo isso, o infortúnio de trazer ainda sobre o nariz os óculos cor-de-rosa de suas virginais ilusões. Luís Alves via bem com os olhos da cara. Não era mau rapaz, mas tinha o seu grão de egoísmo, e se não era incapaz de afeição, sabia regê-las, moderá-las, e sobretudo guiá-las ao seu próprio interesse. Entre estes dois homens travara-se amizade íntima, nascida para um na simpatia, para outro no costume. Eram eles os naturais confidentes um do outro, com a diferença que Luís Alves dava menos do que recebia, e, ainda assim, nem tudo o que dava exprimia grande confiança. (Cap. I / O fim da carta)

48 Suponho que o leitor estará curioso de saber quem era o feliz ou infeliz mortal, de quem as duas trataram no diálogo que precede, se é que já não suspeitou que esse era nem mais nem menos o sobrinho da baronesa, — aquele moço que apenas de passagem lhe apontei nas escadas do Ginásio.      Era um rapaz de vinte e cinco a vinte seis anos. Jorge chamava-se ele; não era feio, mas a arte estragava um pouco a obra da natureza. O muito mimo empece a planta, disse o poeta, e essa máxima não é só aplicável à poesia, mas também ao homem. Jorge tinha um lindo bigode castanho, untado e retesado com excessivo esmero. Os olhos, claros e vivos, seriam mais belos, se ele não os movesse com afetação, às vezes feminina. O mesmo direi dos modos, que seriam fáceis e naturais, se os não tornasse tão alinhados e medidos. As palavras saíamlhe lentas e contadas, como a fazer sentir toda a munificência do autor. Não as proferia como as demais pessoas; cada sílaba era por assim dizer espremida, sendo fácil ver ao cabo de alguns minutos, que ele fazia consistir toda a beleza da elocução nesse alongar do vocábulo. As idéias orçavam pelo modo de as exprimir; eram chochas por dentro, mas traziam uma côdea de gravidade pesadona, que dava vontade de ir espairecer o ouvido em coisas leves e folgazãs.      Tais eram os defeitos aparentes de Jorge. Outros havia, e desses, o maior era um pecado mortal, o sétimo. O nome que lhe deixara o pai, e a influência da tia podiam servir-lhe nas mãos para fazer carreira em alguma coisa pública; ele, porém, preferia vegetar à toa, vivendo do pecúlio que dos pais herdara e das esperanças que tinha na afeição da baronesa. Não se lhe conhecia outra ocupação.      Não obstante os defeitos apontados, havia nele qualidades boas; sabia dedicarse, era generoso, incapaz de malfazer, e tinha sincero amor à velha parenta. A baronesa, pela sua parte, queria- lhe muito. Guiomar e ele eram as suas duas afeições principais, quase exclusivas.   (Cap 7 / Um Rival)

49 A primeira coisa que Estevão pôde descobrir é que a vizinha era moça
A primeira coisa que Estevão pôde descobrir é que a vizinha era moça. Via-lhe o perfil, em cada aberta que deixavam as árvores, um perfil correto e puro, como de escultura antiga. Via-lhe a face cor de leite, sobre a qual se destacava a cor escura dos cabelos, não penteados de vez, mas frouxamente atados no alto da cabeça, com aquele desleixo matinal que faz mais belas as mulheres belas. O roupão, — de musselina branca, — finamente bordado, não deixava ver toda a graça do talhe, que devia ser e era elegante, dessa elegância que nasce com a criatura ou se apura com a educação, sem nada pedir, ou pedindo pouco à tesoura da costureira. Todo o colo ia coberto até o pescoço, onde o roupão era preso por um pequeno broche de safira. Um botão, do mesmo mineral, fechava em cada pulso as mangas estreitas e lisas, que rematavam em folhos de renda.      Estevão, da distância e na posição em que se achava, não podia ver todas estas minúcias que aqui lhes aponto, em desempenho deste meu dever de contador de histórias. O que ele viu, além do perfil, dos cabelos, e da tez branca, foi a estatura da moça, que era alta, talvez um pouco menos do que parecia com o vestido roçagante que levava. Pôde ver-lhe também um livrinho, aberto nas mãos, sobre o qual pousava os olhos, levantando-os de espaço a espaço, quando lhe era mister voltar a folha, e deixando-os cair outra vez para embeber-se na leitura.   (Cap 8 / Ao pé da cerca)

50 A beleza superior de Guiomar:
Estevão do lugar onde estava podia examinar-lhe as feições, sem ser visto por ela; mas foi justamente do que não cuidou, desde que lhas pôde distinguir. Valia a pena, entretanto, contemplar aqueles grandes olhos castanhos, meio velados pelas longas, finas e bastas pestanas, não maviosos nem quebrados, como ele os cuidara ver, mas de uma beleza severa, casta e fria. Valia a pena admirar como eles comunicavam a todo o rosto e a toda a figura um ar de majestade tranqüila e senhora de si. Não era ela uma dessas belezas que, ao mesmo tempo que subjugam o coração, acendem os sentidos; falava à inteligência primeiro do que ao coração, tanto a arte parecia haver colaborado com a natureza naquela criatura, meia estátua e meia mulher.      Tudo isto podia ver e considerar o nosso bacharel. A verdade, porém, é que a nenhuma destas coisas atendeu. Desde que distinguira as feições da moça, ficou como tomado de assombro, com os olhos parados, a boca entreaberta, fugindolhe a vida e o sangue todo para o coração. (Cap 8 / Ao pé da cerca)

51

52 Helena: Nas dificuldades, Helena se isola, “buscava nas estrelas” a sua felicidade, se refugia do mundo e recorre à solidão como refrigério para sua alma atormentada. “Quando a tormenta pareceu extinta, a moça sentou-se na cama e olhou vagamente em torno de si. Depois ergueu-se; dirigiu-se trôpega ao quarto de vestir; ali parou diante do espelho, mas fugiu logo, como se pesasse encarar consigo mesma. Uma das janelas estava aberta. Helena foi ali aspirar um pouco do ar da noite. Esta era clara, tranqüila e quente. As estrelas tinham uma cintilação viva que as fazia parecer alegres. Helena enfiou um olhar por entre elas como procurando o caminho da felicidade. Esteve à janela cerca de meia hora; depois entrou, sentou-se e escreveu uma carta. “(ASSIS 1979: 65) Confrontada e desafiada por seus oponentes, a protagonista não consegue lutar e acaba se entregando à má sorte. Acovarda-se, se deixa levar por um turbilhão de dúvidas e emoções que acabam em um final trágico. Helena torcia-se no leito como se todos os ventos do infortúnio se houvessem desencadeado sobre ela. Em vão tentava abafar os soluços, cravando os dentes no travesseiro. Gemia, entrecortava o pranto com exclamações soltas, enrolava no pescoço os cabelos deslaçados pela violência da aflição, buscando na morte o mais pronto dos remédios. Colérica, rompeu com as mãos o corpinho do vestido; e o jovem seio, livre de sua casta prisão, pôde à larga desafogar-se dos suspiros que o enchiam. Chorou muito; chorou todas as lágrimas poupadas durante aqueles meses plácidos e felizes, leite da alma com que fez calar a pouco e pouco os vestígios de sua dor. (ASSIS 1979: 65 )

53 Fim melodramático de Helena
Helena mordeu o lábio com desesperação, mas não respondeu. A cabeça descaiu-lhe lentamente como ao peso de uma idéia, a mais e opressora. Depois, ergueu-a; os olhos tristes, mas animados dos últimos raios de uma esperança, dirigiram-se para os de Estácio, que nessa ocasião pareciam falar as dores todas da paixão sufocada e rebelde. Ambos eles os baixaram a terra, medrosos de si mesmos. (ASSIS 1979: 133). Com um gesto rápido, tomou nos braços, estendido, o corpo exausto de Helena, e caminhou na direção da casa. O vento flagelava-os; a chuva, que subitamente caía a jorros, alagava-os sem misericórdia; ele ia andando, o mais depressa que lhe permitia o peso de Helena, cuja cabeça pendia para a terra, e de cujos lábios brotavam trechos soltos de frases sem sentido. (ASSIS, 1979: 138) Os olhos desta, já volvidos para a eternidade, deitaram um derradeiro olhar para a terra, e foi Estácio que o recebeu _ olhar de amor, de saudade e de promessa. A mão pálida e transparente da moribunda procurou a cabeça do mancebo; ele inclinou-a sobre a beira do leito, escondendo as lágrimas e não se atrevendo a encarar o final instante. Adeus! Suspirou a alma de Helena rompendo o invólucro gentil. Era defunta. (ASSIS 1979: 140)

54 Seus sentimentos não vinham à flor do rosto
Seus sentimentos não vinham à flor do rosto. Tinha todos os visíveis sinais de um grande egoísta; contudo, posto que a morte do conselheiro não lhe arrancasse uma lágrima ou uma palavra de tristeza, é certo que a sentiu deveras. [...] Era difícil saber se Camargo professava algumas opiniões políticas ou nutria sentimentos religiosos. Das primeiras, se as tinha, nunca deu manifestação prática; e no meio das lutas de que fora cheio o decênio anterior, conservara-se indiferente e neutral. Quanto aos sentimentos religiosos, a aferi-los pelas ações, ninguém os possuía mais puros. Era pontual no cumprimento dos deveres de bom católico. Mas só pontual; interiormente, era incrédulo. (ASSIS, 1997, p. 18)

55 De qualquer modo, só em Iaiá Garcia Machado de Assis se mostra senhor dos seus instrumentos de expressão e preparado para a criação, para os grandes livros que se seguirão agora até à sua morte. Ainda terá que abrir mão de uma só coisa: da confiança nos homens, ou pelo menos nos seus sentimentos. (PEREIRA, Lúcia Miguel. Machado de Assis, Estudo Crítico e Biográfico, 3ª ed.,São Paulo: Cia. Nacional, São Paulo, 1946, p.164) Em Iaiá Garcia, a virtude de Estela é coesa e inabalável, ditada por um sentimento confesso de orgulho que não cederá a nenhuma isca de cooptação. A sua dignidade não só a isenta de qualquer deslize interesseiro como a torna refratária ao mínimo ato de menosprezo cometido contra os que estejam abaixo dela na escala social. É significativo desta sua nobreza (que não lhe vem do sangue, nem dos bens, mas da consciência) o episódio em que o moço rico Jorge lhe segreda ao ouvido palavras de caçoada da pronúncia de um operário: Estela “cerrava, entretanto o gesto aos epigramas”. Convém lembrar que o pai de Estela, agregado da família de Jorge, é descrito como uma natureza oposta à da filha, o que dá um dos aduladores mais típico e enjoativo da obra de Machado: Estela era o vivo contraste do pai, tinha a alma acima do destino.” ( BOSI, 2003, p.55 )

56 Como nos romances anteriores, Machado aspirava à igualdade da condição humana alicerçada na integridade e na autenticidade do caráter e do sentimento, amparadas pela fé e pelo respeito cristão. Daí porque, apesar de certas concessões, contorna soluções românticas para o desenrolar dos acontecimentos e dá ênfase à vontade consciente contra o azar da sorte ou do destino: Estela disfarça e ‘Estrangula’ o seu sentimento: ‘nunca! Jurou ela a si mesma.` Anti-romanticamente, a distância social prevalece contra o amor, mas isto por convicção da própria valia, e não por tradicionalismo. Daí que as negativas muito decididas de Estela tenham elas mesma alguma vibração romântica, pois na fuga à relação desigual ecoa a recusa da desigualdade ela própria, além de se insinuar uma concepção mais exigente do amor, de que a situação de dependência seria indigna. (SCHWARZ, 1981, p.130). entre um e outro lance exterior, o narrador dá um mergulho no íntimo das personagens em busca da justificativa moral das condutas. Outras vezes, procede de modo inverso, isto é, esboça uma situação concreta para revelar um estado de espírito. Isso é comum nos bons romancistas, mas em Machado de Assis assume relevo especial, principalmente pelo poder simbólico do pormenor, o qual é selecionado por um critério rigorosamente poético. ( TEIXEIRA, 1998, p. 50 )

57 A “falsa” protagonista:
Contava onze anos e chamava-se Lina. O nome doméstico era Iaiá. No colégio, como as outras meninas lhe chamassem assim, e houvesse mais de uma com igual nome, acrescentavam-lhe o apelido de família. Esta era Iaiá Garcia. Era alta, delgada, travessa; possuía os movimentos súbitos e incoerentes da andorinha. A boca desabrochava facilmente em riso, um riso que ainda não toldavam as dissimulações da vida, nem ensurdeciam as ironias de outra idade. Longos e muitos eram os beijos trocados com o pai. ( ASSIS, 1983, p. 13 )

58 Iaiá Garcia (1878) – último romance da “primeira fase”:
Introdução de Estela (o eixo verdadeiro da trama) Filha de Sr. Antunes, devia toda sua educação à família de Jorge, morava na casa de Valéria, e vai ser essa proximidade com o rapaz que desencadeará o interesse dele. Pálida era, da palidez das monjas, mas sem nenhum tom de melancolia ascética. Tinha os olhos grandes, escuros, talhados à feição de amêndoa, por baixo de duas sobrancelhas lisas, cheias e corretas. Os olhos eram a parte mais saliente do rosto, a que dominava tudo, não obstante a harmonia das restantes feições; é que havia neles uma expressão de virilidade moral, que dava à beleza de Estela o principal característico. Uma por uma, as feições da moça eram graciosas e delicadas; mas a impressão que deixava o todo estava longe da meiguice natural do sexo. Estela, posta entre as musas, seria Melpomene. Tinha as formas; restava só que o destino fizesse correr sobre elas o gemido das paixões trágicas. Usualmente, trazia roupas pretas, cor que preferia a todas as outras. A mulher pálida, que não usa de preferência a cor preta, carece de um instinto. Estela possuía esse instinto do contraste. Nu de enfeites, o vestido punha-lhe em relevo o talhe esbelto, elevado e flexível. Nem ousava nunca trazê-lo de outro modo, sem embargo de algum dixe ou renda com que a viúva a presenteava de quando em quando; rejeitava de si toda a sorte de ornatos; nem folhos, nem brincos, nem anéis.

59 Luís Garcia (pai de Iaiá Garcia, no começo da trama de 41 anos de idade)
Era alto e magro, um começo de calva, barba raspada, ar circunspeto. Suas maneiras eram frias, modestas e corteses; a fisionomia um pouco triste. Um observador atento podia adivinhar por trás daquela impassibilidade aparente ou contraída as ruínas de um coração desenganado. Assim era; a experiência, que foi precoce, produzira em Luís Garcia um estado de apatia e ceticismo, com seus laivos de desdém. ... Por fora, havia só a máscara imóvel, o gesto lento e as atitudes tranquilas. Estela e Luís Garcia discutem sobre o projeto de se unirem: — Creio que nenhuma paixão nos cega, e se nos casarmos é por nos julgarmos friamente dignos um do outro. — Uma paixão de sua parte, em relação à minha pessoa, seria inverossímil, confessou Luís Garcia; não lha atribuo. Pelo que me toca, era igualmente inverossímil um sentimento dessa natureza, não porque a senhora não pudesse inspirar, mas porque eu já não o poderia ter. — Tanto melhor, concluiu Estela; estamos na mesma situação e vamos começar uma viagem com os olhos abertos e o coração tranqüilo. Parece que em geral os casamentos começam pelo amor e acabam pela estima; nós começamos pela estima; é muito mais seguro.

60 A imperturbável seriedade de Estela foi um aguilão mais, não menos cruel que a gentileza de suas formas, e certo ar de resolução que lhe transparecia no rosto quieto e pálido. Pálida era, mas sem nenhum tom de melancolia ascética. Tinha os olhos grandes, escuros, com expressão de virilidade moral, que dava á beleza de Estela o principal característico. Uma por uma, as feições da moça eram graciosas e delicadas, mas a impressão que deixava o todo estava longe da meiguice do sexo (ASSIS, 1997, p. 24). Apresenta-se Raimundo no capítulo I ( p. 2

61 Simples agregada ou protegida, não se julgava com direito a sonhar outra posição superior e independente; e dado que fosse possível obtê-la, é lícito afirmar que recusara, porque a seus olhos seria um favor, e a sua taça de gratidão estava cheia. Valéria, que também era orgulhosa, descobrira-lhe essa qualidade, e não lhe ficou querendo mal; ao contrário, veio a apreciá-la melhor. ( MACHADO DE ASSIS, 1983, P.33 ). Não alegrou nada. Nunca pesara tanto a fatalidade da posição. Depois do episódio da Tijuca, parecia-lhe aquele favor uma espécie de perdas e danos que a mãe de Jorge liberalmente lhe pagava, uma água virtuosa que lhe lavaria os lábios dos beijos que ela forcejava por extinguir, como lady Macbeth a sua mancha de sangue. Out, damned spot! Este era o seu conceito; esta era também a sua mágoa. A altivez com que procedera desde aquela manhã de algum modo lhe levantara o orgulho, que o ato inconsiderado de Jorge havia por um instante humilhado. Mas a ação da moça a conseqüência de fazer decorrer o benefício da mesma origem da afronta. Era tudo a mesma bolsa; e dali é que lhe vinha o dote. ( MACAHADO DE ASSIS, 1983 , p. 53 )

62 _ Vês? disse Estela; foi por mim que ele fez o sacrifício de ir para a guerra, sem esperança de ser retribuído nem de contar um dia com a minha gratidão. Foi para a guerra, lutou, padeceu, fiel ao sentimento que o tinha levado, até o ponto de o crer eterno. Eterno! Sabes quanto durou essa eternidade de alguns anos. É duro de ouvir, minha filha, mas não há nada eterno neste mundo; nada, nada. As mais profundas paixões morrem com o tempo. Um homem sacrifica o repouso, arrisca a vida, afronta à vontade de sua mãe, rebela-se, e pede a morte; e essa paixão violenta e extraordinária acaba às portas de um simples namoro, entre duas xícaras de xá... ( MACHADO DE ASSIS, 1983, p.122). O caminho de Estela, entretanto parece apontar em direção de uma saída diferente e heróica: o trabalho assalariado. Perto do fim, a morte de Luís Garcia traz a reorganização das relações de família. Depois de anos de luta em sentido contrário, a moça vê-se na posição de sogra e dependente de seu amado, e de rival infeliz de sua enteada. Resolve partir para o norte de São Paulo onde será professora. Sem alusões ao passado, as suas cartas são escritas “no mais puro estilo familiar”, expressão que no contexto é sarcástica, e assinala a liberdade que finalmente ela encontrou. (SCHWARZ, 1981, p.160).

63 Uma Criatura Sei de uma criatura antiga e formidável, Que a si mesma devora os membros e as entranhas, Com a sofreguidão da fome insaciável. Habita juntamente os vales e as montanhas; E no mar, que se rasga, à maneira do abismo, Espreguiça-se toda em convulsões estranhas. Traz impresso na fronte o obscuro despotismo; Cada olhar que despede, acerbo e mavioso, Parece uma expansão de amor e egoísmo. Friamente contempla o desespero e o gozo, Gosta do colibri, como gosta do verme, E cinge ao coração o belo e o monstruoso. Para ela o chacal é, como a rola, inerme; E caminha na terra imperturbável, como Pelo vasto areal um vasto paquiderme. Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo Vem a folha, que lento e lento se desdobra, Depois a flor, depois o suspirado pomo. Pois essa criatura está em toda a obra: Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto, E é nesse destruir que as suas forças dobra. Ama de igual amor o poluto e o impoluto; Começa e recomeça uma perpétua lida; E sorrindo obedece ao divino estatuto Tu dirás que é a morte; eu direi que é a vida.

64 A mosca azul Entre as asas do inseto, a voltear no espaço,
Era uma mosca azul, asas de ouro e granada, Filha da China ou do Indostão, Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada, Em certa noite de verão. E zumbia, e voava, e voava, e zumbia, Refulgindo ao clarão do sol E da lua, - melhor do que refulgiria Um brilhante do Grão-Mogol. Um poleá que a viu, espantado e tristonho, Um poleá lhe perguntou: "Mosca, esse refulgir, que mais parece um sonho, Dize, quem foi que to ensinou?" Então ela, voando, e revoando, disse: - "Eu sou a vida, eu sou a flor "Das graças, o padrão da eterna meninice, "E mais a glória, e mais o amor." E ele deixou-se estar a contemplá-la, mudo, E tranqüilo, como um faquir, Como alguém que ficou deslembrado de tudo, Sem comparar, nem refletir. Entre as asas do inseto, a voltear no espaço, Uma cousa lhe pareceu Que surdia, com todo o resplendor de um paço E viu um rosto, que era o seu. Era ele, era um rei, o rei de Cachemira, Que tinha sobre o colo nu, Um imenso colar de opala, e uma safira Tirada ao corpo de Vichnu. Cem mulheres em flor, cem nairas superfinas, Aos pés dele, no liso chão, Espreguiçam sorrindo, as suas graças finas, E todo o amor que têm lhe dão. Mudos, graves, de pé, cem etíopes feios, Com grandes leques de avestruz, Refrescam-lhes de manso os aromados seios, Voluptuosamente nus. Vinha a glória depois; - quatorze reis vencidos, E enfim as páreas triunfais De trezentas nações, e o parabéns unidos Das coroas ocidentais.

65 Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ela,
Quis vê-la, quis saber a causa do mistério. E, fechando-a na mão, sorriu De contente, ao pensar que ali tinha um império, E para casa se partiu. Alvoroçado chega, examina, e parece Que se houve nessa ocupação Miudamente, como um homem que quisesse Dissecar a sua ilusão. Mas o melhor de tudo é que no rosto aberto Das mulheres e dos varões, Como em água que deixa o fundo descoberto, Via limpo os corações. Então ele, estendendo a mão calosa e tosca, Afeita a só carpintejar, Como um gesto pegou na fulgurante mosca, Curioso de a examinar. (Ocidentais, in Poesias completas, 1901.) Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ela, Rota, baça, nojenta, vil, Sucumbiu; e com isto esvaiu-se-lhe aquela Visão fantástica e sutil. Hoje, quando ele aí vai, de áloe e cardamomo Na cabeça, com ar taful, Dizem que ensandeceu, e que não sabe como Perdeu a sua mosca azul. poleá homem sem origem nobre, o plebeu, o João ninguém taful sm (armênio thaphur) 1 homem casquilho, janota, peralta. 2 p us Jogador por ofício ou por hábito. 3 O que conhece bem o seu ofício. adj 1 Casquilho, janota, loução, luxuoso. 2 Festivo, alegre. Fem: tafula. Pl: tafuis. Dt. “Schickimicki”, Stutzer

66 Machado de Assis tem como tema comum de seus contos o cotidiano e a vida das pessoas que habitavam o Rio de Janeiro no século XIX. É possível fazer uma análise daquela época através de sua narrativa, que através de simples histórias revelam os costumes, a forma de socialização, as relações de poder presentes naquela sociedade. Além do retratar a sociedade, Machado consegue como poucos revelar a psique humana. Através da ironia, uma marca de seus textos, o autor é capaz de retratar e problematizar o homem <universal > e não apenas um tipo específicon (costumbrismo) . Consegue caracterizar tão profundamente as fraquezas do ser humano, que seus contos passam a ser universais, fazendo com que qualquer um possa se identificar. No conto “Teoria do Medalhão”, Machado retrata a aniquilação do indivíduo em favor de uma imagem e posição social considerada privilegiada. O pai pretende realizar-se a partir do filho e lhe aconselha a se tornar um medalhão: alguém reconhecido, com prestígio social, mas que abre mão de seus gostos pessoais, de instruir-se. Em “O Alienista”, fica clara a análise psicológica e crítica que faz do homem e da sociedade. Ao criar um hospital para tratar a insanidade, o médico acaba internando a maior parte da cidade, concluindo que é loucura seria o padrão social.

67 Em quase meio século de atividade no gênero, num período que vai de 1858 a 1907, Machado deixou 205 contos, entre os quais dezenas de obras-primas, das melhores escritas em qualquer época e país, que o colocam como uma espécie de pico solitário da literatura universal, ao lado de outros mestres do gênero, um Tchekwov, um Maupassant, uma Katherine Mansfield No início da “segunda” fase criativa do autor, situam-se os contos de Papéis Avulsos (1882), marcados pela inquietação diante da condição humana. São amargos, irônicos, sarcásticos, críticos impiedosos do bicho homem, cheios de situações ambíguas, quando nada acontece, mas palpita uma riquíssima carga de humanidade. No começo de sua carreira, o escritor não deu muita importância ao gênero. O primeiro conto, publicado aos 19 anos, chamava-se Três Tesouros Perdidos, e o segundo, O País das Quimeras só saiu três anos depois (em 1862). O exercício constante e persistente do gênero só se realiza após Convidado a colaborar no Jornal das Famílias, as suas histórias agradam tanto as leitoras que cada número publica dois ou três trabalhos seus, obrigando-o a utilizar diversos pseudônimos.

68 A chinela turca O machete Na arca O alienista Teoria do medalhão Uma visita de Alcebíades D. Benedita O segredo do Bonzo O anel de Polícrates O empréstimo A sereníssima república O espelho Verba testamentária A igreja do Diabo Conto alexandrino Cantiga de esponsais Singular ocorrência Último capítulo Galeria póstuma Capítulo dos chapéus Anedota pecuniária Primas de Sapucaia Uma senhora Fulano A segunda vida Trina e una Noite de almirante, A senhora do Galvão, As academias de Sião Evolução O enfermeiro Conto de escola D. Paula O diplomático A cartomante Adão e Eva Um apólogo A causa secreta Uns braços Entre santos Trio em lá menor Terpsícore A desejada das gentes Um homem célebre O caso da vara Missa do galo Idéias de canário Uma noite Pílades e Orestes Pai contra mãe

69 O Alienista O personagem Dr. Simão Bacamarte, o alienista, é um médico que, depois de frustrar-se com a falta de filhos em seu casamento, resolve dedicar-se ao estudo da neurologia na pequena e pacata cidadezinha Itaguaí. Instigado pela falta de filhos e um suposto obstáculo psíquico em sua esposa D. Evarista, começa a investigar a falta de sanidade humana. Dr. Simão cria, então, a Casa Verde, no intuito de abrigar os loucos da região e de aprofundar seus estudos. No início seu ato foi bem visto, porém, com o tempo, ele passou a internar pessoas sem motivos aparentes, o que gerou uma rebelião popular. Porfírio, líder da rebelião, consegue tomar o poder, mas ao fim, resolve manter a Casa Verde. Ao perceber que a maior parte da cidade estava internada, o alienista resolve liberar os internos e rever sua teoria: se a maioria apresentava características de insanidade, então os “normais” é que estavam fora do padrão e deviam ser internados. Após algum tempo, revê novamente sua teria e conclui que ninguém tinha personalidade perfeita, somente ele. Decide se internar sozinho na Casa Verde para o resto da vida. Neste conto-novela, fica clara a análise psicológica e crítica que o autor /narrador (no disfarce de um velho cronista) faz do homem e da sociedade. Ao criar um hospital para tratar a insanidade, o médico – espécie de mad scientist – durante a primeira fase da narrativa acaba internando a maior parte da cidade, concluindo que é loucura o padrão social.

70 Teoria do Medalhão É um diálogo entre pai e filho na noite em que este completa a maioridade. O pai aconselha o filho a mudar seus hábitos, deixar de lado seus gostos e opiniões a fim de se tornar um Medalhão, ou seja, uma pessoa de fama e riqueza. Na teoria do pai, para alcançar esse objetivo era preciso ser uma pessoa neutra diante dos acontecimentos, ter um vocabulário limitado, preferindo sempre a conversa e o humor simples, não a ironia. Deveria apenas parecer ser sábio, mas sem precisar ser. Depois de aconselhar, o pai pede para o filho ir dormir e pensar no que lhe disse. Machado retrata a aniquilação do indivíduo em favor de uma imagem e posição social considerada privilegiada. O pai pretende realizar-se socialmente através do filho e lhe aconselha a se tornar um medalhão: alguém reconhecido, com prestígio social, mas que abre mão de seus gostos pessoais, de instruir-se.

71 O Enfermeiro Procópio é um enfermeiro que vai para uma cidade do interior cuidar de um velho rico e rabugento. No início, Procópio achou que estava com sorte, mas logo viu que seus dias não seriam fáceis tendo que aturar as ofensas verbais e até físicas do velho Felisberto. Chega a pedir as contas, mas o velho pede desculpas e o enfermeiro resolve ficar. As ofensas continuam e, numa certa noite, o enfermo joga uma vasilha na cabeça de Procópio, este, com os nervos a flor da pele, acaba matando o velho enforcado. O enfermeiro tinha fama de paciente e acaba ficando com a herança do velho. Diante da boa imagem que tinha na cidade, Procópio acaba esquecendo a sua culpa e fica com a herança sem grandes remorsos. A história é narrada pelo enfermeiro, já velho e a beira da morte.

72 Último Capítulo é o. Narrado em primeira pessoa, Machado de Assis nos traz a figura sombria do bacharel em direito, Matias Deodato de Castro e Melo, de 51 anos de idade, que está prestes a cometer o suicídio, no ano de 1871, e neste bilhete de um suicida começa a explicar a razão dos termos de seu testamento, no qual dispõe que sejam seus objetos e um casebre que possui vendidos, e o dinheiro revertido na compra de sapatos e botas novas, a serem distribuídos conforme indicação sua. Mais precisamente, Matias Deodato, homem amargurado, que se define como “um grande caipora, o mais caipora de todos os homens”, sintetiza, nas entrelinhas, as agruras de uma vida marcada por reveses que vão desde a infância solitária a uma carreira sem brilhantismo, passando pelo casamento insosso e pela tragédia de um filho tão esperado que nasceu morto, culminando com a descoberta – após a morte da mulher Rufina, vítima de “uma febre perniciosa” –, que ela o traíra com o amigo Gonçalves, confidente e quase compadre. O caiporismo foi comigo, na garupa do burro, e onde eu me apeei, apeou-se ele também. Vi-lhe o dedo em tudo, nas demandas que não vinham, nas que vinham e valiam pouco ou nada, e nas que, valendo alguma coisa, eram invariavelmente perdidas. Assim, Matias Deodato resume a falta de sorte que o acompanhou por toda a vida, até que, cansado e sem esperança de ser feliz, desiste de viver. E o conto bem poderia chamar-se “O caipora”, não fosse a descoberta que nosso amigo faz enquanto se prepara para o “mergulho na eternidade”.

73 Debruçado na janela, vê passar um homem conhecidamente vítima de vários infortúnios, que segue, no entanto, risonho, contemplando os sapatos de verniz bem talhados, conforme observa nosso caipora. Ia alegre; via-se lhe no rosto a expressão de bem-aventurança. Evidentemente era feliz; e, talvez, não tivesse almoçado; talvez mesmo não levasse um vintém no bolso. Mas ia feliz, e contemplava as botas (...) nada vale, para ele, um par de botas, comenta ele, concluindo assim que a felicidade é um par de botas. Daí a razão do testamento de Matias Deodato, que acredita, com a ação, fazer um certo número de venturosos, e conclui sua narrativa com a exclamação: “Eia, caiporas! Que a minha última vontade seja cumprida. Boa noite, e calçai-vos!”

74 Singular Ocorrência Este conto é o relato de um homem a um amigo sobre o caso extraconjugal de um outro amigo. Ele conta que esse amigo e a amante eram apaixonados (ela abandonara a prostituição por ele) e que, numa única vez, o havia traído. E foi este caso que gerou um grande turbilhão emocional que quase acabou no rompimento e suicídio da amante, mas eles por fim se reconciliaram e viveram felizes até que ele mudou de província e morreu antes de voltar. A traição de uma ex-prostituta, de caráter irreprochável, em relação ao amante, é narrada sem que nenhum dos interlocutores do conto consiga encontrar uma explicação racional para o fato. Em Singular Ocorrência o autor afasta-se do narrador e deixa o leitor identificar-se consigo mesmo na pessoa do herói-narrador. Não existe neste conto um narrador explícito, entretanto, no diálogo desenvolvido pelas personagens evidencia que existe uma outra narrativa dentro da primeira, pois fala da história de uma mulher que foi avistada pelas personagens que realizam o diálogo inicial. Portanto, Machado de Assis soube utilizar-se da técnica narrativa do diálogo com perfeição, não havendo, neste caso, a necessidade de utilização de um narrador interferindo na história vivida pelas personagens. Sem, no entanto, deixar de fazer uso da interferência e juízos de valor quando passa a uma das personagens o papel de narrador para contar a história de Marocas.

75 A Cartomante Rita é amante de Camilo, amigo de infância de seu marido Vilela. Insegura com essa situação e com medo de perder o amante, Rita resolve procurar uma cartomante e conta para Camilo, este zomba de sua inocência e diz não acreditar em previsões. A aproximação dos amantes se deu com a morte da mãe de Camilo, o casal se aproximou dele e Rita acabou se envolvendo amorosamente. Certo dia, Camilo recebe uma carta anônima dizendo que sabiam de seu romance secreto. Com isso, ele se afasta de Rita e esse é o principal motivo de sua insegurança. Depois de um tempo afastado, Camilo recebe uma carta de Vilela pedindo para ir a sua casa com urgência. Camilo, então, decide visitar a cartomante da qual antes zombava. A cartomante acalmou Camilo, dizendo que nada aconteceria. Como havia “adivinhado” o seu susto, Camilo fica confiante e se convence de que não há nada a temer. Vai à casa de Vilela e antes que batesse na porta, o amigo lhe recebe alterado. Sem dizer nada, Vilela faz um gesto para Camilo segui-lo. Chegando à sala, Camilo dá um grito por ver Rita morta. Vilela o pega pela gola e também lhe mata com dois tiros.

76 Missa do Galo Nogueira vai estudar no Rio de janeiro e se hospeda na casa do escrivão Meneses, um parente distante. Meneses mantém um caso extraconjugal consentido por sua esposa, Conceição, uma mulher boa e pacata. Nogueira não retorna para Mangaratiba, sua terra natal, apesar de estar de férias porque quer assistir à missa do Galo na corte. Na noite da véspera de Natal, Meneses vai encontrar a amante e Nogueira fica acordado lendo e aguardando o horário para ir à missa com o vizinho. Conceição acorda e os dois começam a conversar, falam de assuntos variados, riem, se aproximam no intuito de falar mais baixo para não acordar D. Inácia, mãe de Conceição. Nessa noite, Conceição fica mais solta, mais falante e Nogueira fica encantado observando-a. O vizinho interrompe a conversa e Nogueira parte para a missa do galo. No ano seguinte, Nogueira fica sabendo da morte de Meneses e do casamento de Conceição com um escrevente. O conto é narrado por Nogueira já adulto, dizendo não saber explicar o que tinha acontecido naquela noite entre ele e Conceição.

77 30 Min de análise de Memórias póstumas de Brás Cubas

78 MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS Machado de Assis
AO VERME QUE PRIMEIRO ROEU AS FRIAS CARNES DO MEU CADÁVER DEDICO COMO SAUDOSA LEMBRANÇA ESTAS MEMÓRIAS PÓSTUMAS Ao leitor Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, coisa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará, é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte, e quando muito, dez.. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevia-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião. Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos coisas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus. Brás Cubas

79 CAPÍTULO 1 Óbito do Autor
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo; diferença radical entre este livro e o Pentateuco. Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia - peneirava - uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa idéia no discurso que proferiu à beira de minha cova: -- "Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que tem honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado.“ Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei. E foi assim que cheguei à cláusula dos meus dias; foi assim que me encaminhei para o undiscovered country de Hamlet, sem as ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, mas pausado e trôpego, como quem se retira tarde do espetáculo. Tarde e aborrecido. Viram-me ir umas nove ou dez pessoas, entre elas três senhoras, -- minha irmã Sabina, casada com o Cotrim, -- a filha, um lírio-do-vale, -- e... Tenham paciência! daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora.

80 Contentem-se de saber que essa anônima, ainda que não parenta, padeceu mais do que as parentas. É verdade, padeceu mais. Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse rolar pelo chão, epiléptica. Nem o meu óbito era coisa altamente dramática... Um solteirão que expira aos sessenta e quatro anos, não parece que reúna em si todos os elementos de uma tragédia. E dado que sim, o que menos convinha a essa anônima era aparentá-lo. De pé, à cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca entreaberta, a triste senhora mal podia crer na minha extinção. - Morto! morto! dizia consigo. E a imaginação dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viu desferirem o vôo desde o Ilisso às ribas africanas, sem embargo das ruínas e dos tempos, -- a imaginação dessa senhora também voou por sobre os destroços presentes até às ribas de uma África juvenil... Deixá-la ir; lá iremos mais tarde; lá iremos quando eu me restituir aos primeiros anos. Agora, quero morrer tranqüilamente, metodicamente, ouvindo os soluços das damas, as falas baixas dos homens, a chuva que tamborila nas folhas de tinhorão da chácara, e o som estrídulo de uma navalha que um amolador está afiando lá fora, à porta de um correeiro. Juro-lhes que essa orquestra da morte foi muito menos triste do que podia parecer. De certo ponto em diante chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-me no peito, com uns ímpetos de vaga marinha, esvaía-se-me a consciência, eu descia à imobilidade física e moral, e o corpo fazia-se-me planta, e pedra, e lodo, e coisa nenhuma.

81 CAPÍTULO 3 – Genealogia Mas, já que falei nos meus dois tios, deixem-me fazer aqui um curto esboço genealógico. O fundador de minha família foi um certo Damião Cubas, que floresceu na primeira metade do século XVIII. Era tanoeiro de ofício, natural do Rio de Janeiro, onde teria morrido na penúria e na obscuridade, se somente exercesse a tanoaria. Mas não; fez-se lavrador, plantou, colheu, permutou o seu produto por boas e honradas patacas, até que morreu, deixando grosso cabedal a um filho, o licenciado Luís Cubas. Neste rapaz é que verdadeiramente começa a série de meus avós -- dos avós que a minha família sempre confessou - porque o Damião Cubas era afinal de contas um tanoeiro, e talvez mau tanoeiro, ao passo que o Luís Cubas estudou em Coimbra, primou no Estado, e foi um dos amigos particulares do vice-rei conde da Cunha. Como este apelido de Cubas lhe cheirasse excessivamente a tanoaria, alegava meu pai, bisneto do Damião, que o dito apelido fora dado a um cavaleiro, herói nas jornadas da Africa, em prêmio da façanha que praticou arrebatando trezentas cubas ao mouros. Meu pai era homem de imaginação; escapou à tanoaria nas asas de um calembour. Era um bom caráter, meu pai, varão digno e leal como poucos. Tinha, é verdade, uns fumos de pacholice; mas quem não é um pouco pachola nesse mundo? Releva notar que ele não recorreu à inventiva senão depois de experimentar a falsificação; primeiramente, entroncou-se na família daquele meu famoso homônimo, o capitão-mor Brás Cubas, que fundou a vila de São Vicente, onde morreu em 1592, e por esse motivo é que me deu o nome de Brás. Opôs-se-lhe, porém, a família do capitão-mor, e foi então que ele imaginou as trezentas cubas mouriscas. Vivem ainda alguns membros de minha família, minha sobrinha Venância, por exemplo, o lírio-do-vale, que é a flor das damas do seu tempo; vive o pai, o Cotrim, um sujeito que... Mas não antecipemos os sucessos; acabemos de uma vez com o nosso emplasto.


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