A liberdade como problema

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Transcrição da apresentação:

A liberdade como problema

(mas pior: a falta de sede) a luz apagada a torneira seca (mas pior: a falta de sede) a luz apagada (mas pior: o gosto do escuro) a porta fechada (mas pior: a chave por dentro) José Paulo Paes

O poema nos fala, de forma extremamente concentrada e precisa, do núcleo da liberdade e de sua ausência. O poema lança um contraponto entre a situação externa experimentada como um dado(a torneira seca, a luz apagada, a porta fechada) e a inércia resignada do interior do sujeito ( a falta de sede, o gosto do escuro, a chave por dentro)

O contraponto é feito pela expressão “mas pior”. Que significa ela?

Que diante da adversidade, renunciamos a enfrentá-la, fazemo-nos cúmplices dela e é isso o pior. Pior é a renúncia à liberdade.

Secura, escuridão e prisão deixam de estar fora de nós, para se tornar nós mesmos, com nossa falta de sede, nosso gosto do escuro e nossa falta de vontade de girar a chave.

Carlos Drummond de Andrade Mundo vasto mundo, Se eu me chamasse Raimundo Seria uma rima, não seria uma solução. Mundo mundo vasto mundo, mais vasto é meu coração Carlos Drummond de Andrade

Neste poema, Carlos Drummond de Andrade, como José Paulo Paes, confronta-nos com a realidade exterior: o “vasto mundo” do qual somos uma pequena parcela e na qual estamos mergulhados.

Todavia, os dois poemas diferem, pois em vez da inércia resignada, estamos agora diante da afirmação de que nosso ser é mais vasto do que o mundo: pelo nosso coração – sentimentos e imaginação – somos maiores do que o mundo, criamos outros mundos possíveis, inventamos outra realidade. Abrimos a torneira, acendemos a luz e giramos a chave.

Embora diferentes, os dois poemas apontam para o grande tema da ética, desde que esta se tornou questão filosófica: O que está e o que não está em nosso poder?

Até onde se estende o poder de nossa vontade, de nosso desejo, de nossa consciência? Em outras palavras: Até onde alcança o poder de nossa liberdade?

Podemos mais do que o mundo ou este pode mais do que nossa liberdade? O que está inteiramente em nosso poder e o que depende inteiramente de causas e forças exteriores que agem sobre nós?

Por que o pior é a falta de sede e não a torneira seca, o gosto do escuro e não a luz apagada, a chave imobilizada e não a porta fechada? O que depende do “vasto mundo” e o que depende de nosso “mais vasto coração”?

Velho Tema – Vicente de Carvalho Só a leve esperança, em toda a vida, Disfarça a pena de viver, mais nada, Nem é mais a existência resumida, Que uma esperança malograda. O eterno sonho da alma desterrada, Sonho que a traz ansiosa e embevecida, É uma hora feliz, sempre adiada E que não chega nunca em toda vida. Essa felicidade que supomos, Árvore milagrosa que sonhamos Toda arreada de dourados pomos Existe, sim: mas nós não a alcançamos, Porque está sempre apenas onde a pomos E nunca a pomos onde nós estamos.

O poeta contrasta a “esperança malograda” de felicidade e a felicidade que “existe, sim”, mas que não alcançamos porque “nunca a pomos onde estamos”, embora esteja “sempre apenas onde a pomos”.

Porta fechada, vasto mundo, árvore milagrosa: a felicidade parece depender inteiramente do que se encontra fora de nós. Chave por dentro, coração mais vasto, estar sempre apenas onde a pomos: a felicidade parece depender inteiramente de nós.

Seja de modo pessimista, seja de modo otimista, os três poemas nos colocam diante da liberdade como problema. Filosoficamente, esta se apresenta sob a forma de dois pares de opostos:

O par necessidade-liberdade O par contingência-liberdade

Torneira seca, luz apagada, porta fechada: a realidade é feita de situações adversas e opressoras, contra as quais nada podemos, pois são necessárias.

Vasto mundo:se a realidade natural e cultural possui leis causais necessárias e normas-regras obrigatórias, se tanto as leis naturais e culturais não dependem de nós, se somos seres naturais e culturais cuja consciência e vontade são determinados por aquelas leis (da Natureza) e normas-regras (da Cultura), como então falar em liberdade humana?

A necessidade que rege as leis naturais e as normas-regras culturais não seria mais vasta, maior e mais poderosa do que nossa liberdade? O que poderia estar em nosso poder?

Árvore milagrosa: se a felicidade e o bem são milagres, então são puro acaso, pura contingência e não resta senão o jogo interminável entre a “leve esperança” e a grande “esperança malograda”.

Se o mundo é um tecido de acasos felizes e infelizes, como esperar que sejamos sujeitos livres, se tudo o que acontece é imprevisível, fruto da boa e da má sorte, de acontecimentos sem causa e sem explicação?

Como sermos sujeitos responsáveis num mundo feito de acidentes e de total indeterminação? Se tudo é contingência, onde colocar a liberdade?

O par necessidade-liberdade também pode ser formulado em termos religiosos, como fatalidade-liberdade, e em termos científicos, como determinismo-liberdade.

Necessidade é o termo empregado para referir-se ao todo da realidade, existente em si e por si, que age sem nós e nos insere em sua rede de causas e efeitos, condições e conseqüências.

Fatalidade é o termo usado quando pensamos em forças transcendentes superiores às nossas e que nos governam, quer o queiramos ou não.

Determinismo é o termo empregado, a partir do século XIX, para referir-se à realidade conhecida e controlada pela ciência e, no caso da ética, particularmente ao ser humano como objeto das ciências naturais (química e biologia) e das ciências humanas (sociologia e psicologia), portanto, como completamente determinado pelas leis e causas que condicionam seus pensamentos, sentimentos e ações, tornado a liberdade ilusória.

O par contingência liberdade também pode ser formulado pela oposição acaso-liberdade. Contingência ou acaso significam que a realidade é imprevisível e mutável, impossibilitando deliberação e decisões racionais, definidoras da liberdade.

Num mundo em que tudo acontece por acidente, somos como frágil barquinho perdido num mar tempestuoso, levado em todas as direções, ao sabor das vagas e dos ventos.

Necessidade, fatalidade, determinismo significam que não há lugar para liberdade, porque o curso das coisas e de nossas vidas já está fixado, sem que nele possamos intervir.

Contingência e acaso significam que não há lugar para a liberdade, porque não há curso algum das coisas e de nossas vidas sobre o qual pudéssemos intervir.

Tomemos um exemplo de necessidade oposto à liberdade.

Não escolhi nascer numa determinada época, num determinado país, numa determinada família, com um corpo determinado. As condições de meu nascimento e de minha vida fazem de mim aquilo que sou e minhas ações, meus desejos, meus sentimentos, minhas intenções, minhas condutas resultam dessas condições, nada restando a mim senão obedecê-las. Como dizer que sou livre e responsável?

Se, por exemplo, nasci negra, mulher, numa família pobre, numa sociedade racista, machista e classista, que me discrimina racial, sexual e socialmente, que me impede o acesso à escola e a um trabalho bem remunerado, que me proíbe a entrada em certos lugares, que me interdita amar quem não for da mesma “raça” e classe social, como dizer que sou livre para viver, sentir, pensar e agir de uma maneira que não escolhi, mas foi-me imposta?

Tomemos, agora, um exemplo da contingência oposta à liberdade.

Quando minha mãe estava grávida de mim, houve um acidente sanitário, provocando uma epidemia. Minha mãe adoeceu. Nasci com problemas de visão. Foi por acaso que a gravidez de minha mãe coincidiu com o acaso da epidemia: por acaso, nasci com distúrbios visuais.

Tendo esses distúrbios, preciso de cuidados médicos especiais Tendo esses distúrbios, preciso de cuidados médicos especiais. No entanto, na época em que nasci, o governo de meu país institui um plano econômico de redução de empregos e privatização do serviço público de saúde. Meu pai e minha mãe ficaram desempregados e não podiam contar com o serviço de saúde para meu tratamento.

Tivesse eu nascido em outra ocasião, talvez pudesse ter sido curada de meus problemas visuais.

Quis o acaso que eu nascesse numa época funesta Quis o acaso que eu nascesse numa época funesta. Tal como sou, há coisas que não posso fazer. Sou, porém, bem dotada para a música e poderia receber uma educação musical. Porém, houve uma decisão do governo municipal de minha cidade de demolir o conservatório musical público. Não posso pagar um conservatório particular e ficarei sem a educação musical, porque, por acaso, moro numa cidade que deixará de ter um serviço público de educação artística.

Morasse eu em outra cidade ou fosse outro o governo municipal, isso não aconteceria comigo. Como, então, dizer que sou livre para decidir e escolher, se vivo num mundo onde tudo acontece por acaso?

Diante da necessidade e da contingência, como afirmar que “mais vasto é meu coração”? – ou que a felicidade “está sempre onde a pomos”?

Examinemos mais de perto os dois exemplos mencionados.

No primeiro exemplo – negra, mulher, pobre, numa sociedade racista, machista, classista – parece que nada posso fazer. A porta está fechada e a luz apagada. Porém, nada estará no poder da minha liberdade? Terei de gostar do escuro e permanecer com a porta fechada?

Se a ética afirmar que a discriminação étnica, sexual e de classe é imoral (isto é, violenta), se eu tiver consciência disso nada farei? Serei impotente para lutar livremente contra tal situação? Mantendo-me resignada, conformada, passiva e omissa não estarei fazendo da necessidade uma desculpa, um álibi para não agir?

No segundo exemplo – epidemia, desemprego, fim do serviço público de saúde e educação artística – também parece que nada posso fazer. Será verdade? Não estarei transformando os acasos de meu nascimento e das condições políticas em desculpa e álibi para minha resignação?

Falarei em “destino” e “má sorte”para explicar o fechamento de todos os possíveis para mim? Renunciarei à vastidão do meu coração, aceitando que a felicidade sempre será posta onde não estou?

Nos dois casos podemos indagar se, afinal, para nós resta somente “a pena de viver, mais nada” ou se, como escreveu o filósofo Sartre, o que importa não é saber o que fizeram de nós e sim o que fazemos com o que quiseram fazer conosco.

CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 12 ed CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 12 ed., São Paulo: Ática, 2001, p. 357-360.