Eu tinha nove anos. A roupa da minha amiga Ana ficava numa caixa de papelão, debaixo da cama. Não tinha como não comparar. O meu quarto era cor-de-rosa.

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3 Eu tinha nove anos. A roupa da minha amiga Ana ficava numa caixa de papelão, debaixo da cama. Não tinha como não comparar. O meu quarto era cor-de-rosa com detalhes em branco. Um armário só para mim, não sei quantas gavetas. E eu me sentia tão bem na casa dela.

4 O almoço, uma delícia: arroz, feijão, tomate e galinha. Eu segurava os talheres de forma diferente. Era a única coisa que me fazia destoar daquela gente. A galinha não era comprada em supermercado não. Posso garantir, eu via a Catarina correndo atrás da bicha... Nossa, que destreza. De quem?

5 Das duas: difícil saber quem corria mais, a moça ou a galinha. Mas a Catarina ganhava sempre. Olha, não era fácil assistir à penosa sendo decapitada. Um nojo, sangue espirrando para todo o lado. À tarde o sol queimava, fartura de céu azul. Na nossa frente era só mato, muito mato. O verde brilhava feito lâmina de faca.

6 Hora do banho. “Hum, não vamu tomar banho não, tá tão bom assim.” Mas dona Luizinha era severa: “já pro banho, suas moleca, tão fedeno a bosta de vaca!” E a gente obedecia. Alguns panelões de água no fogo para amornar o banho. A água era pouca, mas o sabonete muito cheiroso. Depois era colocar a roupa limpinha e bem passada.

7 Quando chegava a lua, a peãozada aportava. Parecia uma festa, mas eram somente os vizinhos. E vinha a delícia da noite, o descanso do dia: sanfona e pandeiro, tudo que a alma queria.

8 Era a música da terra, o si bemol de pé no chão. O cruzeiro do sul e as três marias já iam longe. A melodia ia embora, cada um em seu casebre. E restávamos nós, meus amigos e eu. Ana, Catarina, seu Joaquim e dona Luizinha.

9 Era hora de dormir, de voltar para a minha casa. Entrava no quarto cor-de-rosa e me aninhava na cama. Gostava do meu conforto. Gostava ainda mais de saber que estaria, no dia seguinte, no quintal da casa vizinha. De pé no chão, no chão de terra batida. Aquela gente descalça me fazia feliz.

10 Imagem: recebida por e-mail Texto cedido pela autora: Chão de terra (Ilca Müller) Música: Henry Mancini - The entertainer Formatação: adsrcatyb@terra.com.br Revisão: ubiratan143@oi.com.br Site: www.momentos-pps.com.br Respeite os direitos autorais e de formatação