Evolução e desafios da política brasileira de ciência e tecnologia O papel reservado às empresas Eduardo B. Viotti Centro de Desenvolvimento Sustentável (CDS), Universidade de Brasília (UnB) Seminário Internacional sobre Avaliação de Políticas de Ciência, Tecnologia e Inovação, Rio de Janeiro, Brasil, 3 a 5 de Dezembro de 2007, CGEE.
Estrutura da apresentação Evolução da política brasileira de C&T 1ª Fase: Em busca do desenvolvimento via crescimento (~1950-1980) (industrialização extensiva) 2ª Fase: Em busca do desenvolvimento via eficiência (~1980-2000) 3ª Fase: Em busca de um novo tipo de desenvolvimento (~2000 em diante) (via inovação?) Algumas evidências de resultados das políticas Desafios para a constituição de uma efetiva política de inovação Contribuições da avaliação para o enfrentamento dos desafios atuais
1. Evolução da política brasileira de C&T
1ª Fase: Em busca do desenvolvimento via crescimento (~1950 – 1980) (Industrialização extensiva) Industrialização via substituição de importações (Proteção à indústria nascente, apoio estatal ao investimento privado nacional e estrangeiro, empresas públicas…) (Inspirada na teoria do desenvolvimento formulada pela CEPAL.) (A industrialização era vista como uma forma de transferir tecnologias, relações sociais e instituições modernas para economias atrasadas. Portanto, a industrialização seria a via para o desenvolvimento.)
1ª Fase: Via crescimento (Industrialização) (~1950 – 1980) Política de C&T implícita no modelo de desenvolvimento - Promoção da industrialização extensiva (i.e., absorção da capacidade de produção de bens manufaturados). - Políticos, gestores de política e economistas em geral compartilhavam a crença ingênua de que a industrialização (i.e, a assimilação de capacidade de produção) iria trazer naturalmente a “industrialização” do processo de mudança técnica (i.e., o desenvolvimento de capacidade de inovação).
1ª Fase: Via crescimento (Industrialização) (~1950 – 1980) Política de C&T explícita - Promoção de pesquisa e desenvolvimento (P&D) (criação e fortalecimento de universidades e instituições de pesquisa, assim como formação de recursos humanos para P&D). - Política de C&T ofertista (desarticulada da política industrial) - Inspirada pelo Modelo Linear de inovação (“science-push”)
1ª Fase: Via crescimento (Industrialização) (~1950 – 1980) Conseqüências - Os processos de industrialização e de crescimento econômico foram bem sucedidos. - O Brasil foi considerado um “milagre econômico” durante os anos 1970, de forma similar àquela em que nos dias de hoje são consideradas a China e a Índia. - No entanto, a dinâmica do crescimento foi perdida a partir do final da década de 1970. - A oferta de conhecimentos parece não haver encontrado sua demanda. - A esperada “industrialização” do processo de mudança técnica foi essencialmente um fracasso. - A competitividade internacional da indústria brasileira permaneceu muito baixa.
1ª Fase: Via crescimento (Industrialização) (~1950 – 1980) - A pobreza e a desigualdade permaneceram muito elevadas. - Esgotou-se o dinamismo econômico do crescimento baseado na substituição de importações e enfraqueceu-se a capacidade de o Estado implementar políticas de desenvolvimento.
2ª Fase: Em busca do desenvolvimento via eficiência (~1980 - 2000) Liberalização (Privatização, desregulamentação, redução ou remoção de subsídios e de barreiras tarifárias e não-tarifárias ao comércio internacional, atração de investimento direto estrangeiro…) (Inspirada no Consenso de Washington) Política de C&T implícita no modelo de desenvolvimento - Expectativa de que a liberalização dos mercados e a elevação das pressões competitivas compeliriam as empresas a inovar. - Expectativa de que abertura do mercado doméstico para produtos, serviços e capitais estrangeiros contribuiria para a elevação da intensidade e da velocidade do processo de transferência de tecnologias para o país.
2ª Fase: Via eficiência (~1980 - 2000) Política de C&T explícita - Promoção das atividades de P&D, acompanhada de contido ou relutante apoio a instituições de pesquisa e ensino públicas. - Expansão e consolidação da pós-graduação. - Educação, especialmente educação fundamental, vista como uma espécie de panacéia universal. - Fortalecimento do regime de propriedade intelectual (internalização do TRIPS). - Promoção de empreendedorismo e de incubadoras. - Introdução da “inovação” no discurso da política, mas essa era vista mais como uma conseqüência do correto conjunto de incentivos e punições proporcionados pela liberalização do mercado. - O Modelo Linear manteve forte influência.
2ª Fase: Via eficiência (~1980 - 2000) Conseqüências - A formação de recursos humanos de alto nível – mestres e doutores, assim como a produção científica, expandiram-se a taxas muito elevadas. - Houve elevação da eficiência e produtividade de certos setores industriais baseada principalmente em estratégias defensivas, na utilização de insumos importados e na adoção de novas técnicas de gestão e controle de qualidade. - A pressão competitiva, a abertura, e o fortalecimento da propriedade intelectual demonstraram-se incapazes de efetivamente estimular o desenvolvimento de uma dinâmica significativa de inovação nas empresas. - O crescimento agregado e o desenvolvimento tecnológico do país foram pouco significativos.
2ª Fase: Via eficiência (~1980 - 2000) - Ocorreu uma especialização regressiva na pauta de exportações: os produtos intensivos em recursos naturais e em mão-de-obra voltaram a ganhar participação na pauta. - Os níveis de pobreza e desigualdade não sofreram redução significativa e permaneceram muito elevados. (Isso ocorreu apesar da forte expectativa dos defensores da agenda liberal de que o contrário é que deveria acontecer com a remoção da intervenção estatal típica do período de substituição de importações, que se supunha ser uma das principais razões da persistência dos elevados níveis de pobreza e desigualdade). - Desilusão com as promessas do Consenso de Washington relativamente difundida entre a população.
3ª Fase: Em busca de um novo tipo de desenvolvimento (~2000 em diante) (via inovação?) Paradigma de políticas misto ou indefinido (Muitos dos fundamentos das políticas inspiradas pela agenda característica da fase anterior permanecem. Iniciam-se experimentos na direção do fortalecimento de determinadas políticas públicas que não se alinham inteiramente com aquela agenda. Políticas sociais e compensatórias vêm sendo fortalecidas.) Política implícita de C&T no modelo de desenvolvimento - Ainda não é possível discernir a emergência de características específicas de uma nova política implícita de C&T.
3ª Fase: Um novo tipo (~2000 em diante) (via inovação?) Políticas explícitas de C&T - Uma das características marcantes das atuais políticas de C&T nacional e estaduais é o experimentalismo, o lançamento de uma miríade de diferentes programas e instrumentos ainda que sem estratégias, prioridades e coordenação muito efetivas. - Parte desse experimentalismo pode ser atribuída ao fato de as velhas práticas de políticas terem se tornado obsoletas ou proibidas e de não haver emergido um novo paradigma de políticas adequado aos tempos de globalização e OMC. - Parece crescer a consciência de que a crença na emergência de forte processo de inovação nas empresas, como resultado natural do processo de abertura, fortalecimento da propriedade intelectual e ampliação dos investimentos estrangeiros, também foi ingênua. Assim como o foi a crença semelhante existente no período de substituição de importações.
3ª Fase: Um novo tipo (~2000 em diante) (via inovação?) - Como conseqüência de tal consciência, a adoção de políticas ativas para promover a inovação assume crescente importância no debate sobre as políticas econômicas, industriais e de C&T. A abordagem associada ao Modelo Sistêmico está sendo absorvida por analistas e formuladores ou executores de política. (Entre outras medidas, a nova “Lei de Inovação” autoriza a participação minoritária do governo federal no capital de empresas privadas de propósito específico que visem o desenvolvimento de inovações; assim como a concessão de recursos financeiros, sob a forma de subvenção econômica, financiamento ou participação acionária, visando o desenvolvimento de produtos e processos inovadores.)
3ª Fase: Um novo tipo (~2000 em diante) (via inovação?) (A chamada “Lei do Bem” autoriza, por exemplo, a concessão de subvenções econômicas a empresas que contratarem pesquisadores, titulados como mestres ou doutores, para a realização de atividades de P&D e inovação tecnológica.) (Essas são medidas de política cuja inspiração rompe com o paradigma do Modelo Linear.) Contudo, a prática tem mostrado que é mais fácil estabelecer objetivos, justificativas e políticas de C&T inspiradas pela abordagem sistêmica, do que executá-las efetivamente sem deixar que as práticas tradicionais (inspiradas pelo Modelo Linear) acabem por influenciar ou dominar a implementação de políticas. O Modelo Linear não foi substituído ou deslocado inteiramente.
3ª Fase: Um novo tipo (~2000 em diante) (via inovação?) Algumas outras tendências ou características que merecem atenção - O interesse de estados e municípios pela inovação como ferramenta de desenvolvimento regional ou local tem crescido de maneira significativa. - A atenção dedicada pela mídia brasileira a assuntos relacionados a ciência, tecnologia e inovação tem aumentado. - O novo conceito de Arranjos Produtivos Locais (APL’s), apesar dos usos indevidos ou abusos, é uma nova ferramenta de grande utilidade para análise e intervenção no processo de mudança técnica e inovação. Pode vir a se consolidar como uma das formas de se viabilizar práticas que rompam de maneira efetiva com o paradigma de políticas inspiradas no Modelo Linear e que tornem mais efetiva a abordagem sistêmica.
3ª Fase: Um novo tipo (~2000 em diante) (via inovação?) - A emergência de um segmento específico da política voltado para a promoção da C&T a serviço da inclusão social aparece como uma novidade importante. Apesar de incipiente e de estar mais dedicado à educação, difusão de práticas ou tecnologias e à capacitação em C&T, do que à inovação propriamente dita, sua importância não pode ser desconsiderada. (É possível criticar o estágio atual de formulação dessa política e questionar sua eficácia como ferramenta de inclusão social. Contudo, sua própria existência coloca a necessidade de ser enfrentado o debate - sempre adiado - sobre quais e quantos são os beneficiados pelos resultados da política de C&T em contraposição à questão da neutralidade da C&T e da liberdade de pesquisa.)
2. Algumas evidências de resultados das políticas
Qual foi a evolução do padrão de vida da população brasileira durante as fases do desenvolvimento brasileiro?
Qual é a relação disso com C&T?
Nem o crescimento da renda per capita e da produtividade ocorrido durante a primeira fase, nem a perda posterior desse dinamismo, podem ser atribuídas apenas à política explícita de C&T. Contudo, estão certamente relacionados com a evolução dos processos de absorção, aperfeiçoamento e geração de tecnologias ou inovações por parte das empresas produtivas brasileiras. Seria a baixa produtividade brasileira resultado do fato de a política de C&T não haver sido bem sucedida?
Resultado das políticas A política de C&T foi um sucesso em termos dos principais objetivos que ela buscou de forma direta: oferecer recursos humanos para a pesquisa e conhecimentos científicos. A política de C&T foi um fracasso em termos de seu principal objetivo indireto: estimular a ocorrência de um processo significativo de inovação nas empresas (que muitos de seus formuladores e executores esperava viesse a ocorrer naturalmente).
3. Desafios para a constituição de uma efetiva política de inovação
A política de C&T conseguiu criar uma base significativa de formação de recursos humanos para pesquisa e de produção de conhecimentos científicos. Essa é uma conquista muito importante que precisa ser preservada e aperfeiçoada. Contudo, seu maior desafio atual é o de efetivamente integrar a empresa ao sistema de C&T, transformar o sistema brasileiro de C&T em um verdadeiro sistema nacional de inovação. É preciso reconhecer isso e é preciso fazer com que a política brasileira reflita a consciência dessa realidade. É preciso romper com a tradição ofertista, baseada no Modelo Linear, e avançar efetivamente na direção de uma verdadeira política de inovação, informada pelo Modelo Sistêmico.
Porém, é preciso ir muito além da adaptação da política de C&T a essa necessidade de integrar a empresa. É preciso fazer da inovação o motor da nova política de desenvolvimento. O primeiro obstáculo a superar é a velha e persistente inconsistência entre as políticas macroeconômicas e o objetivo de estimular a inovação. O País parece estar passando por uma oportunidade histórica na qual é possível construir uma convergência de políticas implícitas e explícitas em favor da construção de um novo modelo de desenvolvimento baseado na inovação. Muitos dos obstáculos estruturais, que impediram a ocorrência dessa convergência no passado, parecem ter sido removidos ou podem ser superados.
Inflação, déficits fiscal e de balanço de pagamentos foram controlados. Há condições para a redução das taxas de juros e da sobre-valorização da moeda nacional. O Estado está recuperando sua capacidade de financiar políticas públicas. Está sendo superada a ideologia ou doutrina econômica paralizante, que supunha desnecessária ou desaconselhável a a existência de políticas de desenvolvimento. O País já possui uma significativa base científica e de recursos humanos. Como visto na primeira seção, já há claros movimentos da política de C&T recente na direção de uma política de inovação.
Contudo, tais movimentos ainda são insuficientes. Será necessário enfrentar o desafio de tornar a política de inovação mais consistente e articulada com as políticas industrial, ambiental, social, educacional, de saúde e defesa. Para tudo isso acontecer, as políticas de CT&I precisam deixar o gueto acadêmico (privilegiado no Modelo Linear) e ampliarem suas bases de apoio ou interesse, incorporando outros segmentos da sociedade. É fundamental estabelecer processos de definição de agendas de pesquisa que compatibilizem o interesse científico (a competência ou excelência) com sua relevância para o processo de inovação e para as demais políticas.
Cientístas puros e duros podem ser cooptados para essa nova agenda de pesquisas orientada pelo conceito de “pesquisas estratégicas”, que simultâneamente contribuem para o avanço do conhecimento e levam em consideração possíveis aplicações. (Essa é a forma, ensinada por Stokes, de evitar a armadilha da classificação convencional que divide as pesquisas em duas categorias excludentes: pesquisa básica X pesquisa aplicada.) No entanto, a política precisa mover-se para muito além dos limites de uma política de P&D, passando a incluir, em especial, ações voltadas para a criação e o fortalecimento da capacidade de empresas e instituições (públicas) absorverem e gerarem inovações.
(Ações voltadas para a promoção de aperfeiçoamento e adaptação de tecnologias; extensão tecnológica; assistência técnica; demonstração e difusão; redes de produtores, fornecedores e laboratórios; assim como o benchmarking, também precisam ser consideradas como elementos essenciais da política de CT&I.) O envolvimento de empresas requer o desenho de uma política específica para as empresas estrangeiras (que ocupam posições estratégicas na liderança dos setores tecnológicos mais dinâmicos da economia brasileira).
4. Quais são as principais contribuições que o processo de avaliação pode dar ao enfrentamento dos desafios atuais?
O principal desafio identificado anteriormente é muito mais ambicioso do que algo que possa ser simplesmente associado ao aumento da eficiência dos instrumentos de política existentes. Por isso, não se deve concentrar a atenção na avaliação de projetos, mas sim em políticas e instituições (inclusive empresas) e em suas relações no âmbito do sistema nacional de inovação. A avaliação também deve ser sistêmica. Processos de avaliação que buscam avaliar projetos individuais de maneira genérica, reduzindo-os a mínimos denominadores comuns, expressos em indicadores quantitativos, correm o risco de favorecer a adoção de métricas que se tornem mais facilmente reféns de indicadores de excelência (“papers”, por exemplo) e que esquecem a relevância, que pode requerer indicadores diferentes para projetos diferentes.
Avaliações convencionais de projetos podem acabar dando sinais trocados. Projetos bem avaliados na ótica estreita, podem ser projetos que pouco contribuem para o sistema. A visão estreita focada no aumento de resultados (“fins”), dados recursos escassos (“meios”), corre o risco de desconsiderar as economias externas, I.e., as contribuições para o sistema. Por outro lado, o processo de avaliação poderá se beneficiar sobremaneira se for inteiramente separado de processos de controle e fiscalização, que podem e devem ser realizados com procedimentos e equipes diferentes dos envolvidos na avaliação de políticas, programas e instituições.
As instituições de pesquisa estão sendo cada vez mais financiadas por projetos de pesquisadores individuais ou de grupos ou por editais. Tal tendência contribui para a entropia interna e sistêmica das instituições. Essa é mais uma razão da necessidade e importância da avaliação de instituições. A ótica da gestão de programas e projetos é importante, mas é preciso fortalecer a avaliação de resultados e, nesse sentido, a empresa – agente por excelência da inovação – deve receber atenção privilegiada de processos de avaliação. Por exemplo, é inadiável a incorporação de aspectos referentes às necessidades do mercado de trabalho nos processos de avaliação da pós-graduação, assim como da formação de recursos humanos pelas universidades.
A avaliação deve ser parte de um processo sistemático e permanente de “police learning”, ou seja, ela deve informar e ter conseqüências para a política e para as instituições, assim como deve envolver seus agentes. Nesse sentido, um dos papéis mais importantes que a avaliação poderia prestar para a transformação almejada seria contribuir para a redução dos graus de empirismo, experimentalismo e descoordenação de políticas, instrumentos e programas, que caracterizam as atuais políticas de CT&I nacional e estaduais.