Ana Paula Melchiors Stahlschmidt

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Transcrição da apresentação:

Ana Paula Melchiors Stahlschmidt DE QUEM É A MÚSICA? Ana Paula Melchiors Stahlschmidt Nas mais diversas sociedades, em diferentes locais e períodos da história da humanidade, encontramos na música um elemento importante e associado a distintas funções: acompanhamento em rituais religiosos, educação, terapia, expressão e tradição cultural ou prática capaz de proporcionar prazer a ouvintes, compositores e executantes. Tal fato não surpreende se pensarmos que desde momentos anteriores ao nascimento a música – pensada aqui não somente como uma forma artística, mas também como sonoridade – faz parte de nossa vida. Já no útero, aproximadamente na metade da gestação, o bebê humano é capaz de escutar os sons do ambiente em que está inserido, aí incluídos o repertório musical de seu grupo social e familiar, os sotaques que compõe sua comunidade lingüística e especialmente a voz materna.

Após o nascimento é inicialmente através da música da voz, mais do que do conteúdo das palavras que enuncia, que a mãe se comunica com o filho. O “manhês”, modo de falar normalmente empregado por adultos frente a um bebê, é, antes de tudo, caracterizado pela musicalidade. Se comparado a outras formas de expressão empregadas na interlocução com crianças maiores ou com adultos, a fala com bebês utiliza tons mais agudos, tempos mais lentos e pronúncia mais curta, além de especificidades quanto à gramática, pontuação, escansão e prosódia, aspectos essenciais para a constituição subjetiva e para que a criança venha a, no devido tempo, aceder à linguagem e, também, à música. Ao mesmo tempo é também através da entonação da voz, presente no choro, nos balbucios e no riso que o bebê expressa sua relação com seu mundo.

Para o bebê humano, a inserção no mundo é inserção em voz: é o grito primal ou palavra de vida... Esta voz não se apaga senão quando ele dá seu último sopro: é o último suspiro ou silêncio de morte... A sede de ar que faz gritar o moribundo é a mesma que faz gritar o recém-nascido: entre estes dois gritos do ser, há o tempo da vida, o percurso de uma consciência, a trama de um destino. Fazer entender sua voz, balbuciar, falar, cantar, rir ou chorar, é viver como sujeito no mundo dos homens Marie-France Castarède

Ao mesmo tempo a música também se faz presente na vida da criança através do repertório que escuta na família, na escola e nos demais ambientes que freqüenta, assumindo em seu desenvolvimento importantes e diferentes funções. Sabe-se hoje, apesar da polêmica que permeia o tema e gerou inclusive longas e passionais discussões pela Internet, que as canções infantis, com sua ampla gama de monstros, personagens e cenários assustadores, mostram-se fundamentais para o bebê. Essas canções permitem, por um lado, a transformação da angústia pura em medo, localizado em um objeto e, portanto, mais fácil de lidar. Por outro lado, tais canções permitem a expressão da ambivalência materna frente a toda cota de irritação inerente ao manejo com o bebê, com a superposição de temas eventualmente “agressivos” a melodias suaves e capazes de proporcionar à criança o relaxamento que antecede o sono, de que tanto necessita.

Por essas relações iniciais que temos com a música através da voz materna e das primeiras canções, é que ela se torna um elemento importante quando, no futuro, a utilizamos como forma de dar a conhecer sentimentos que dificilmente poderiam ser expressados através de palavras. Não por sua complexidade mas justamente por estarem relacionados às nossas primeiras vivências como seres humanos, em um tempo anterior à possibilidade de expressão verbal. Considerando tais aspectos, é de surpreender que, quando questionadas sobre sua relação com a música, tantas pessoas mencionem “não ter ouvido” ou “não saberem nada de música”, a despeito de, via de regra, ressaltarem que gostam de escutar música, dançar ou cantar. Tal discurso parece trazer em si a idéia de que a música seria um privilégio dos compositores ou instrumentistas profissionais, quando sabemos que a apreciação e a relação “informal” com esta forma artística são aspectos igualmente relevantes e valorizados no que diz respeito à relação do ser humano com a música.

Mais do que a possibilidade de escutá-la, a música nos permite sentir que somos escutados, em um ponto onde a mensagem do Outro se torna nossa própria palavra. A partir destas considerações, Alain Didier-Weill denominou a experiência singular que vivemos ao ouvir determinadas obras, de “nota azul”, descrevendo-a como aquela que nos acertará em cheio. E permitirá que, mesmo a audição repetida da obra, nos provoque a sensação paradoxal de encontrar algo sempre novo. Por isso, em momentos em que nos sentimos solitários ou entristecidos, é tão comum recorrermos à música como uma companheira que nos entende “no mais além da palavra”, como nos diz Paulo Costa Lima. Diante destas considerações, podemos perceber a importância da atividade musical para o ser humano, cumprindo em uma sociedade as mais variadas funções, entre as quais poderíamos citar o prazer estético e lúdico, a representação simbólica, a expressão corporal, a adaptação aos valores sociais e a contribuição para a continuidade da tradição cultural.

É importante ressaltar, porém, parafraseando Donald Winnicott, que refere o mesmo em relação ao brincar, que antes de relevante por qualquer função específica, quer para a criança ou para o adulto, a atividade musical é importante como fim em si mesma. Ouvir música, dançar, inventar melodias e canções ou simplesmente cantar, não é apenas uma atividade erudita, privilégio de músicos profissionais, mas bem acessível a todos os seres humanos, constituindo-se em um direito de todos estabelecer com a música a relação que melhor lhe convier. Sem dúvida, tal relação proporcionará experiências únicas, pois como bem expressou a mãe de um bebê, escutada em uma entrevista sobre a importância da música em sua vida e em seus laços com a filha: “Quando tu falas, tá, tudo bem! Mas o cantar... ah, tu pões outra coisa no cantar!!!”

Referências CASTARÈDE, Marie-France. La Voix et ses Sortilèges. Paris: Les Belles Lettres, 2000. Trecho traduzido livremente do original em francês. CORSO, Mário. Monstruário: inventário de entidades imaginárias e mitos brasileiros. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2002. DIDIER-WEILL, Alain. Lila et la Lumière de Vermeer: la Psychanalyse à l’École des Artistes. Paris: Denoël, 2003. LAZNIK, Marie-Christine. A voz como primeiro objeto da pulsão. Estilos da clínica. São Paulo, USP-IP, vol.1, n 1, p. 80-93, 1996. LIMA, Paulo Costa. Música e Psicanálise: Uma bibliografia preliminar com 100 trabalhos de referência. ART 023, Revista da Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia. Salvador, p. 39-51, 1995.

STAHLSCHMIDT, Ana Paula STAHLSCHMIDT, Ana Paula. A Canção da Pequena Sereia: voz, melodias e encantamento, na constituição dos laços mãe-bebê. In: Léa Sales. (Org.). Pra quê esta boca tão grande? Questões acerca da oralidade. Salvador: Ágalma, 2005. STAHLSCHMIDT, Ana. Paula. M. . Cantos e Encantos: sobre a música na voz e a voz na música. In: Esther Beyer. (Org.). O Som e a Criatividade: reflexões sobre experiências musicais. Santa Maria: UFSM, 2005. TREVARTHEN, Colwyn; AITKEN, Kenneth. Infant Intersubjectivity: Research, Theory, and Clinical Applications. Journal of Child Psychobiology and Psychiatry and Allied Disciplines. Cambridge University Press, v. 42, n. 1, p. 3-48, 2001. WINNICOTT, Donald W. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975. WINNICOTT, Donald W. Textos Selecionados: da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1993.