O homem e a cultura - Leontiev O homem é um ser qualitativamente diferente dos animais. O homem (homo sapiens) possui todas as propriedades necessárias ao seu desenvolvimento sócio-histórico ilimitado. A passagem do homem a uma vida em que sua cultura é cada vez mais elevada não exige mudanças biológicas hereditárias.
O processo de hominização, enquanto mudanças essenciais na organização física do homem, termina com o surgimento da história social da humanidade. A teoria da luta pela existência detêm-se no limiar da história cultural. Toda atividade racional do homem não é senão uma luta contra a luta pela existência. É um combate para que todas as pessoas na Terra possam satisfazer as suas necessidades, para que não haja fome; para que todos possam desenvolver-se plenamente e superar a luta cotidiana pela existência.
A experiência sócio-histórica da humanidade se acumula sob a forma de fenômeno do mundo exterior objetivo. O mundo da tecnologia, das ciências e das artes é a expressão e resultado da transformação histórica do homem.
O processo de apropriação deste mundo cultural é ao mesmo tempo o processo de formação das faculdades específicas do homem. Para tal apropriação, um processo ativo, é necessário se desenvolver em relação aos produtos do desenvolvimento histórico, uma atividade que reproduza, pela sua forma, os traços essenciais da atividade encarnada, acumulada no objeto.
A apropriação dos instrumentos implica uma reorganização dos movimentos naturais instintivos do homem e a formação das faculdades motoras superiores: um processo de formação ativa de “aptidões” novas, funções psíquicas novas. Tal processo também aplica-se aos fenômenos da cultura intelectual. A aquisição da linguagem é o processo de apropriação das operações com palavras fixadas historicamente nas suas significações.
Formar no homem novas características psicofisiológicas, novas funções psíquicas, por meio do processo de apropriação dos fenômenos externos da cultura material e intelectual, constitui o processo de humanização do homem. E é nisto que se diferencia a aprendizagem humana da aprendizagem dos animais. Enquanto nos animais é uma adaptação individual às condições de existência, no homem é um processo de reprodução, nas propriedades do indivíduo, das propriedades e aptidões historicamente formadas na espécie humana. O animal “se contenta” com o desenvolvimento da natureza, o homem constrói sua “natureza”.
As aptidões e funções que se desenvolvem no decurso da história social da humanidade não se fixam no cérebro do homem e não se transmitem conforme as leis da hereditariedade. No decurso do desenvolvimento individual (ontogênico) surgem neoformações cerebrais, que constituem o substrato das aptidões e funções específicas que se formam no decurso da apropriação pelo homem do mundo dos objetos e fenômenos criados pela humanidade – a cultura. O córtex do cérebro humano é um órgão capaz de formar órgãos funcionais.
Para formar em si os órgãos de sua individualidade a criança humana deve entrar em relação com a cultura – instrumentos, conceitos, signos, valores, etc. – por meio de outros homens em comunicação com eles (adultos/professor ou outras crianças que já aprenderam determinada atividade), assim a criança aprende a atividade adequada. Tal processo é um processo de educação.
A educação tem formas diversas: nas primeiras etapas do desenvolvimento da sociedade humana, como nas crianças pequenas, é uma simples imitação dos atos do meio, que se opera sob o seu controle e com sua intervenção; depois complica-se e especializa-se, tomando formas tais como o ensino e a educação escolar, diferentes formas de educação superior e até formação autodidata.
O movimento da história só é possível com a transmissão às novas gerações das aquisições históricas da cultura humana, com educação. O homem individual possui ao nascer uma única aptidão que o distingue de seus antepassados animais: a aptidão para formar aptidões humanas. Mas todos têm acesso aos bens culturais historicamente acumulados pela humanidade? (escola)
A unidade da espécie humana parece ser praticamente inexistente, não em virtude das diferenças de cor da pele ... ou quaisquer outros traços exteriores, mas sim das enormes diferenças e condições no modo de vida, da riqueza da atividade material e intelectual, do nível de desenvolvimento das formas e aptidões intelectuais.
Mas esta desigualdade entre os homens não provém das duas diferenças biológicas naturais. Ela é produto da desigualdade econômica, da desigualdade de classes e da diversidade consecutiva das suas relações com as aquisições que encarnam todas as aptidões e faculdades humanas, formadas no decurso de um processo sócio-histórico.
A divisão social do trabalho (no capitalismo) tem como conseqüência que a atividade material (trabalho braçal) e intelectual (trabalho intelectual), o prazer e o trabalho, a produção e o consumo se separem e pertençam a homens diferentes. Assim enquanto globalmente a atividade do homem (gênero humano) se enriquece e se diversifica, a de cada indivíduo tomado à parte estreita-se e empobrece.
Se bem que as criações humanas pareçam existir pata todos, só uma minoria tem o vagar e as possibilidades materiais de receber a formação requerida, de encarnar em si o que há de verdadeiramente humano no homem (riquezas intelectuais, ideais morais, éticos e estéticos). Para a grande maioria das pessoas, nas sociedades de classes, a apropriação dessas aquisições só é possível dentro de limites miseráveis.
[...] que cada homem, cada povo, tenha a possibilidade prática de tomar o caminho de um desenvolvimento omnilateral e ilimitado. Para tanto é necessário libertar o homem do fardo da necessidade material, de suprimir a divisão mutiladora entre trabalho intelectual e trabalho físico, criar um sistema de educação que assegure tal desenvolvimento a cada novo representante da espécie, que possibilite a cada um a possibilidade de participar enquanto criador de todas as manifestações da vida humana.