Caso Clínico: Anemia Falciforme Brasília, 13/06/2012 Bruno Musso Interno da 6ª série - Medicina – ESCS/SES/DF Coordenação: Dra. Luciana Sugai www.paulomargotto.com.br
Identificação G.S.O, 7 anos, 19 kg, natural de Brasília-DF, residente e procedente de Candangolândia-DF
Atendimento no PS - 29/05/12
Policromasia(+), Hipocromia(+), Anisocitose(+), Drepanócitos(+) HEMOGRAMA COMPLETO Data: 29/05/2012 Resultado Valor de Referência Hemácias 2,31 4,5 - 5,5 M Hemoglobina 7,9 13,5 - 14,5 Hematócrito 20,7% 40 - 50 VCM 89,6 82 - 92 HCM 34,2 28 - 30 CHCM 38,2 32 - 36 RDW 19,5% 12 - 17% Policromasia(+), Hipocromia(+), Anisocitose(+), Drepanócitos(+) Leucócitos 16.700 4.000 - 14.000 Bastonetes 1% 0 - 4% Segmentados 77% 30 - 60% Eosinófilos 1 - 5% Monócitos 5% 2 - 10% Linfócitos 16% 30 - 70% Plaquetas 561.000 150.000 - 450.000
EXAMES LABORATORIAIS Data: 29/05/2012 Resultado Valor de Referência Bilirrubina total 3,0 0 - 1 BI 2,51 0,2 - 0,8 BD 0,49 0,0 - 0,2 AST 38 0 - 32 ALT 14 0 - 31 Glicemia 80 70 - 99
CD: INTERNO COM CEFTRIAXONA, OXICILINA (sic) E OXIGÊNIO 29/05/2012 CD: INTERNO COM CEFTRIAXONA, OXICILINA (sic) E OXIGÊNIO
Admissão Ala A- 30/05/2012 QP: Dor torácica há 3 dias HMA: Criança portadora de Doença Falciforme SS, em acompanhamento no Hospital da Criança. Iniciou quadro de tosse produtiva , pouco intensa há cerca de uma semana e há três dias iniciou quadro de dor torácica à direita, irradiada para dorso e ventilatório-dependente, dispneia e febre (não aferida). Iniciou Tylex em domicílio sem melhora, evoluindo para piora importante há um dia. Evolução: mantém-se com tosse, dispnéia e queixa álgica em hemítórax direito ventilatório-dependente, nega outras queixas álgicas. Nega náuseas, vômitos, cianose ou febre.
Antecedentes pessoais Nascido de parto normal, a termo (sic), necessidade de O2 na primeira hora de vida. Sete consultas de pré-natal, desconhece sorologias e refere acretismo placentário (sic). Mãe O+, desconhece tipo sanguíneo da criança. Relata vacinas em dia (não trouxe o cartão da criança). Nega alterações do DNPM
Antecedentes patológicos Refere diagnóstico de Doença Falciforme (SS) no teste do pezinho e faz acompanhamento regular no Hospital da Criança. Já teve outras internações por pneumonia e por crises álgicas, sendo a última internação há um ano. Relata história de 3 transfusões de concentrado de hemácias, a última há cerca de 3 anos. Fez uso de Penicilina Benzatina de 21/21 d até os 4 anos de idade. Faz uso de Tylex em episódios álgicos.
Antecedentes familiares Pai (35 anos) – hígido, pintor, traço falcêmico. Mãe (35 anos) – hígida, do lar, traço falcêmico. Irmãos: 3 irmãos ( 15/12/10 anos), sem comorbidades. Possui 1 primo com Anemia Falciforme.
Exame físico BEG, hipocorado ++/4+, hidratado, acianótico, anictérico, afebril. Ativa e reativa. Fáceis discretas de dor. FC: 106 bpm; FR: 40irpm; SatO2(CN a 1l/min): 98-99%. ACV: NDN AR: MV rude reduzido em base pulmonar direita , com creptos finos e sem alterações à esquerda. Ausência de desconforto respiratório. Sem retração subcostal, tiragem intercotação ou retração de fúrcula esternal. Ausência de batimento de asa do nariz. Abdome: NDN Extremidades: TEC de 2 segundos. Ausência de edema em extremidades. Neuro: Sem sinais de irritação meníngea.
Evolução - 31/05/12 Melhora da dor e da dispnéia em relação a ontem, dormiu bem à noite. Criança taquidispneica no leito, mas sem queixas álgicas. Um episódio de febre de 38° ontem. FC:120bpm - FR:44ipm - SpO2(O2 5L/min sob máscara reinalante):97-98% AR: MV rude à D, diminuído em terço/metade inferior do hemitórax D e associado a crepitações ipsilaterais. MVF à E, s/ RA. ACV: RCR 2T BNF s/ sopros. FC: 120 bpm.
HEMOGRAMA COMPLETO Data: 31/05/2012 Resultado Valor de Referência Hemáceas 2,3 4,5 - 5,5 M Hemoglobina 7,7 13,5 - 14,5 Hematócrito 20,8% 40 - 50 VCM 90,4 82 - 92 HCM 33,5 28 - 30 CHCM 37 32 - 36 RDW 18,8% 12 - 17 Policromasia(+), Hipocromia(+), Anisocitose(+), Microcitose(+), Drepanócitos(+) Leucócitos 27.600 4.000 - 14.000 Bastonetes 2% 0 - 4% Segmentados 76% 30 - 60% Eosinófilos 0% 1 - 5% Monócitos 4% 2 - 10% Linfócitos 18% 30 - 70% Plaquetas 440.000 150.000 - 450.000
EXAMES LABORATORIAIS Data: 31/05/2012 Resultado Valor de Referência Bilirrubina total 2,87 0 - 1 BI 2,01 0,2 - 0,8 BD 0,86 0,0 - 0,2 AST 33 0 - 32 ALT 13 0 - 31 VHS 38 ≤20mm/1h
31/05/2012
31/05/2012
Eco torácica (31/05/12)
Evolução - 01/06/12 Refere que nas últimas 24 horas, apesar do Tylex de horário, teve que fazer uso de Dipirona 3 vezes. Refere um episódio de febre. BEG, hidratada, hipocorada ++/4+, acianótica, anictérica, lúcida, taquidispneica. FC:120bpm - FR:40ipm - SpO2(O2 2L/min sob CN):94-96% AR: MV diminuído em terço inferior do tórax, bilateralmente, mais à esquerda (em contraste com a ausculta de ontem), sopro tubário à D?, crepitações bilaterais. CD: HC + Hemocultura Associada Azitromicina
HEMOGRAMA COMPLETO Data: 01/06/2012 Resultado Valor de Referência Hemáceas 1,92 4,5 - 5,5 M Hemoglobina 6,3 13,5 - 14,5 Hematócrito 16,7% 40 - 50 VCM 87 82 - 92 HCM 32,8 28 - 30 CHCM 37,7 32 - 36 RDW 19,6% 12 - 17 Drepanócitos(+++) Leucócitos 19.900 4.000 - 14.000 Bastonetes 2% 0 - 4% Segmentados 59% 30 - 60% Eosinófilos 1% 1 - 5% Monócitos 7% 2 - 10% Linfócitos 31% 30 - 70% Plaquetas 425.000 150.000 - 450.000
01/06/2012
Evolução (02 - 07/06/12) Melhora progressiva do estado geral, da dispnéia e da dor torácica Polaramine (reações urticariformes A/E) 02/06/12: Lactulose (por 1 dia) 04/06/12: Medicação analgésica apenas SOS 04/06/12: Solicitado concentrado de hemácias fenotipado e deleucotizado
08/06/2012 Ceftriaxone D10 Azitromicina (5 dias) BEG, hidratada, hipocorada ++/4+, acianótica, anictérica, lúcida, eupneica. FC:106bpm - SpO2(a.a.):98%. AR: MVF bilateralmente. Ausência de RA. Sat 98% em ar ambiente. CD: Alta hospitalar com polaramine por mais 5 dias.
Complicações agudas da Anemia Falciforme
Introdução Doença falciforme é uma das doenças monogênicas mais comuns no mundo Herança de duas cópias mutadas de um gene da β-globina, um de cada genitor Mutação GAGGTG, substitui o ácido glutâmico por valina na posição 6 da cadeia de β-globina, formando a HbS
Classificação Mais comuns: Anemia falciforme (βS/βS) Doença da HbSC (βS/βC) HbS/β-talassemia (vários tipos) Dez outros genótipos foram descritos, no entanto são mais raros.
DF e Malária
Fisiopatologia
Complicações da DF São múltiplas, agudas e crônicas Nesta apresentação: Crise álgica STA Infecções AVE Seqüestro esplênico Crise aplástica Priapismo
Crise álgica aguda (vaso-oclusiva) Geralmente é a primeira manifestação da doença (dactilite) Isquemia secundária a obstrução do fluxo sangüíneo Motivo mais comum para internação Geralmente auto-limitada (4-6d) e sem dano permanente Fatores precipitantes: hipóxia, febre, acidos, desidratação, frio Não existe tratamento que altere a história natural
Conduta Hidratação (após euvolemia, não ultrapassar 1,5 vezes o volume de manutenção) Analgesia O2 somente se houver hipoxemia Corticóide - risco de rebote CH - crises refratárias. Não elevar o hematócrito acima de 30%.
Analgésico não-opióide AINE Analgésico não-opióide AINE Opióide A partir do desaparecimento dos sintomas, iniciar retirada da medicação de 24/24h, uma de cada vez Não deve ser prescrita medicação SOS
Síndrome torácica aguda Segunda causa mais comum de internação Principal causa de admissão em UTI e morte precoce Desenvolvimento de um infiltrado novo compatível com consolidação (mas não atelectasia), comprometendo pelo menos um segmento pulmonar Geralmente acompanhada de dor torácica, febre, taquipnéia, sibilância, tosse ou hipoxemia
Exames Radiografia de tórax Hemograma + Hemocultura Gasometria/Oximetria Sorologia para Mycoplasma pneumoniae
Abordagem terapêutica O2 suplementar se PaO2=70-80mmHg ou SatO2=92-95% Analgesia e fisioterapia (evitar hipoventilação) Transfusões simples ou transfusão de troca (PaO2<70mmHg; queda de 10-25%; ICC ou IC Dir.) Antibióticos de largo espectro IV: cefalosporina + macrolídeo/quinolona
Infecções Maior suscetibilidade: Asplenia funcional Incapacidade de gerar anticorpos IgG específicos contra antígenos polissacarídicos Defeitos na ativação do complemento Deficiência de micronutrientes Isquemia tecidual Sepse por pneumococo é a causa mais comum de morte em crianças com DF
Infecções - Imunizações Pneumocócica 10 - aos 2, 4 e 6 meses; reforço aos 12 meses Pneumocócica polissacarídica (23-valente) - aos 2 anos, reforço após 3-5 anos Meningocócica C - aos 3 e 5 meses. Reforço aos 15 meses. Em maiores de 1 ano, dose única. Influenza anual (>6 meses) Hepatite A (> 1 ano, 2 doses c/ intervalo de 6 meses) Hepatite B Varicela (>1 ano, 1 dose em <13 anos, 2 doses com intervalo de 4-8 semanas em ≥13 anos) Hib (<19 anos não vacinados)
Profilaxia antibiótica Penivilina VO: RN/3m até 2-3 anos: 125mg duas vezes ao dia 2-3 anos até 5 anos: 250mg duas vezes ao dia Penicilina G benzatina (SBP): 2 meses a 2 anos: 300.000UI a cada 28d 2 a 5 anos: 600.000UI a cada 28 dias
Terapia empírica
Acidente vascular encefálico DF é uma das causas mais comuns de AVE em crianças 11% dos pacientes até os 20 anos apresentam AVE Risco de recorrência >60% (diminui com a hipertransfusão profilática)
Acidente vascular encefálico Isquemia geralmente associada a vasculopatia de a. carótida interna distal e de aa. Cerebrais médias (vasculopatia extracraniana pode estar presente) Hemorragia é mais comum em adultos: (Não há evidências de benefício com a redução da HbS) Aneurismas Sd. De Moya-Moya (neovascularização)
Doppler transcraniano e hipertransfusão profilática Doppler transcraniano deve ser realizado entre os 2 e os 16 anos Manter HbS<30% reduz em 90% o risco de AVE em pacientes com aumento da velocidade do fluxo sangüíneo ao Doppler
Doppler transcraniano Recomendações brasileiras
Seqüestro esplênico Complicação mais comum que leva a exacerbação aguda da anemia Causado pelo encarceramento intra-esplênico de eritrócitos levando a uma queda súbita da Hb e potencial choque hipóxico Definição: Queda da Hb ≥2g/dL Hematopoese aumentada (e.g. reticulocitose) Aumento agudo do baço
Seqüestro esplênico Foi descrita desde 5 semanas de vida até a idade adulta Mais comum entre os 3 meses e os 5 anos Freqüentemente associado a infecção viral ou bacteriana Recorrência de 50% após o 1º episódio Manifestações clínicas comuns: astenia, palidez, taquicardia, taquipnéia e plenitude abdominal súbitos
Seqüestro esplênico Tratamento imediato: transfusão de emergência para corrigir a hipovolemia Remobilização das hemácias seqüestradas Regressão da esplenomegalia Aumento da Hb (às vezes maior que o esperado para a transfusão)
Recomendações Orientação para os pais: sinais de seqüestro esplênico (palpação do baço, sintomas da anemia progressiva) Pacientes que tiveram episódio grave de SE e necessitaram de transfusão: Esplenectomia ou Hipertransfusão crônica Crianças <2 anos: hipertransfusão até os 2 anos (HbS<30%), depois esplenectomia Hiperesplenismo crônico: esplenectomia
Aplasia transitória de células vermelhas Geralmente precedida por ou associada a doença febril 70-100%: Parvovírus B19 (toxicidade direta) Cefaléia, fadiga, dispnéia, anemia mais severa que o usual Reticulocitopenia (geralmente <1% ou 10.000/μL) Imunidade por toda a vida por IgG específica (não há relato de recorrência)
Aplasia transitória de células vermelhas Tratamento: Em muitos pacientes a recuperação é espontânea Suporte Considerar transfusão nos sintomáticos
Priapismo Ereção não desejada, persistente e dolorosa Causa: vaso-oclusão da drenagem venosa dos corpos cavernosos Prolongada se >3-4h. É uma emergência urológica. Episódios recorrentes podem levar a fibrose e impotência
Priapismo Objetivos do tratamento: Amenizar a dor Cessar a ereção Preservar função erétil Se o tratamento for administrado nas primeiras 4-6 horas, a ereção pode geralmente ser resolvida com medidas conservadoras
Tratamento Pacientes devem ser orientados a: Ingerir mais líquido Analgesia oral Tentar urinar assim que começar o priapismo
Episódios com >2 horas PS Hidratação IV Analgesia parenteral Agentes α-agonistas e β-agonistas? Se não melhorar em 1h: aspiração + irrigação com solução de epinefrina Transfusão de troca para manter HbS<30% (resposta variável; Sd. ASPEN) Shunt (procedimento de Winter)
Referências bibliográficas BRUNETTA, Denise M. et al. Manejo das complicações agudas da doença falciforme. Medicina (Ribeirão Preto), v. 3, n. 43, p.231-237, 2010. GLADWIN, Mark T.; VICHINSKY, Elliott. Pulmonary Complications of Sickle Cell Disease. N Engl J Med, n. 359, p.2254-2265, 2008. LOBO, Clarisse Lopes de Castro et al. Brazilian Guidelines for transcranial doppler in children and adolescents with sickle cell disease. Rev Bras Hematol Hemoter, v. 1, n. 33, p.43-48, 2011. LOPEZ, Fabio Ancona; CAMPOS JÚNIOR, Dioclécio (Org.). Tratado de Pediatria. 2. ed. Barueri, SP: Manole, 2010. MINISTÉRIO DASAÚDE. Indicações para uso dos imunobiológicos especiais nos centros de referência – Crie. Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/portal/saude/visualizar_texto.cfm?idtxt=30949>. Acesso em: 13 jun. 2012. NATIONAL INSTITUTES OF HEALTH. The Management of Sickle Cell Disease. , 2002. REES, David C; WILLIAMS, Thomas N; GLADWIN, Mark T. Sickle-cell disease. The Lancet, n. 376, p.2018-2031, 2010.