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Universidade Federal do Rio de Janeiro

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Apresentação em tema: "Universidade Federal do Rio de Janeiro"— Transcrição da apresentação:

1 Universidade Federal do Rio de Janeiro
Faculdade de Medicina Laboratório de História, Saúde e Sociedade DIAGNÓSTICOS MÉDICOS EM TEXTOS ANTIGOS : DA IDADE MÉDIA AO ILUMINISMO Diana Maul de Carvalho

2 O Regimento proueytoso contra ha pestenença e o Modus curandi cum balsamo são provavelmente os primeiros textos impressos em Portugal referentes à prevenção e tratamento de doenças e agravos à saúde, e sua leitura como ‘textos médicos’ leva a algumas reflexões sobre seu possível público alvo; o contraste com as formas atuais de divulgação científica; os conceitos de doença e intervenção terapêutica, e suas relações com os conceitos e práticas atualmente vigentes. Como já vimos aqui apresentado, o Regimento é certamente uma ‘atualização’ de texto mais antigo, e o Modus curandi quase certamente também o é. No entanto, sua escolha para publicação nos autoriza a considerar que representam um discurso sobre a doença, corrente em Portugal no final do século XVI. É mais difícil afirmar que representam o discurso médico, ainda que seja provável. E é mesmo difícil afirmar que exista um discurso médico hegemônico em Portugal nessa época.

3 Ao ler o Regimento e o Modus curandi, devemos ter em mente que as teorias (e as práticas) hipocráticas, se difundem nas margens do Mediterrâneo, do século VIII ao século XIII, principalmente através dos autores árabes, destacando-se, a partir do século XII, a atuação do grande centro tradutor de Toledo (Cardaillac, 1992). Com a imprensa, algumas obras são especialmente difundidas. A tradução latina do Cânon de Avicena ( ) se torna, nos séculos XV e XVI, a segunda obra mais impressa na Europa, depois da Bíblia (Strohmaier, 1995). Este autor é citado mais de uma vez no Regimento. Às teorias sobre a doença, a prática médica medieval integrará os conceitos e valores cristãos, charitas et infirmitas, fundamentais para a compreensão do lidar com a doença e o doente. À relação paternal de Deus com os homens corresponde a relação fraterna entre os homens.

4 A caridade é a rainha das virtudes teologais (Fé, Esperança e Caridade), e se materializa na misericórdia e suas obras: visitar os doentes; dar de beber a quem tem sede; alimentar os famintos; assistir os presos; vestir os nus; acolher os estrangeiros e peregrinos; velar os mortos. A infirmitas compreende fraqueza, incapacidade para o trabalho, estado de dependência, falta de estatuto social e dignidade; iguala doentes, pobres e peregrinos. Cristo é médico e medicamento. A saúde é salus (salus animae) e sanitas (sanitas corporis)(Crisciani e Agrimi, 1995). A doença é vista como castigo, mas também é vista como provação que pode levar à salvação, à semelhança do Cristo. A partir do século XII, o conceito de infirmitas (doença) se separa cada vez mais do conceito de pauperitas (pobreza). A doença, entendida como carência do corpo, temporária, específica, permite agir sobre ela não apenas através da caridade mas também das artes mecânicas. (Jacquart, 1995)

5 O discurso médico consolida um regime; uma série de recomendações para manutenção da saúde.Os bons ares são essenciais para a boa saúde. O odor é uma qualidade fundamental do ar. Incensos e ervas aromáticas purificam o ar, eliminam a pestilência. O campo é visto como menos sadio que as cidades. Os ventos dominantes do Norte ou Leste são os melhores, mais saudáveis. As janelas devem ser abertas para eles. É melhor morar no primeiro andar das casas (nem no porão, nem no sótão). Água com vinagre; rosas e violetas; folhas de vinha; são frias, refrescam o ar. Se o ar está corrompido e há pestilência, é melhor fechar as janelas e queimar incenso. Quanto à alimentação e digestão, são recomendadas duas refeições por dia, e o excesso de alimentos é considerado mais nocivo que a falta. Legumes quase não constam da alimentação, e só os ricos consomem pão branco, bem como peixes não salgados. No verão deve-se preferir tomar água fria e no inverno água quente (Sotres, 1995).

6 Ao se propor científica, no século XVIII, a prática clínica, diagnóstica e terapêutica, continua a se fundamentar na teoria dos humores, ainda que modificada pelos iatrofísicos e iatroquímicos, na tentativa de incorporar ao discurso médico o discurso científico da época (Haller,1761, Broussais,1828). Assim, ao ler e confrontar os textos medievais com os setecentistas, devemos ter em mente que eles representam um mesmo ‘discurso sobre a doença’, com sucessivas releituras, em contextos históricos diversos. O contraste que nos propomos a explorar, com textos do século XVIII, busca identificar soluções para a crescente necessidade de incorporação do discurso científico, marca do século das Luzes, às teorias sobre a saúde e a doença, e às justificativas das práticas terapêuticas.

7 O texto português, Atalaia da Vida contra as Hostilidades da Morte, de João Curvo Semedo (1720) é anterior às reformas pombalinas mas, em sua estrutura e conteúdo, já reflete o propósito de incorporação de conhecimentos científicos. Seus verbetes, em ordem alfabética, constituem uma enciclopédia do conhecimento médico da época, para uso de médicos e de leigos, resultado de meio século de prática médica de seu autor O texto de John Huxham (1757), dirigido aos médicos, define também a preocupação do autor de se ater aos fatos e à experiência, marcas da Ciência. Os dois textos trazem, entre outras, recomendações diagnósticas e terapêuticas para lesões traumáticas e para as pestes de sua época, as febres e a varíola. Procuramos identificar as semelhanças e contrastes com os textos medievais /renascentistas.

8 Os textos e seu público O século XX consagra no ensino médico a utilização de compêndios de clínica e terapêutica reservados à leitura dos médicos, professores de medicina e alunos dos cursos médicos. A divulgação de ‘conhecimentos médicos’ para os leigos fica reservada a publicações com este fim explícito e que não são leitura ‘para os especialistas’. Esta tendência de compartimentalização do conhecimento sobre a saúde e a doença e as intervenções sobre elas, toma impulso a partir do século XVIII com a definição da prática médica de base científica, e gera uma produção de tratados de ‘médicos para médicos’ e, paralelamente, de ‘médicos para leigos’, contribuindo para a ‘educação do povo’. São, no entanto, espaços estanques, cujos limites só são ultrapassados pelos próprios médicos.

9 No século XVIII, esta separação do conhecimento médico científico e do popular parece não ser nítida e temos vários exemplos da incorporação de conhecimentos ‘populares’ imediatamente aos textos médicos bem como da variedade de destinatários dos tratados de medicina. Na Atalaia da vida contra as hostilidades da morte , João Curvo Semedo, médico da Casa Real portuguesa, reproduz uma receita útil para fazer sair e sarar bexigas: “frigireis quatro ou seis lagartixas vivas em meia canada de azeite velho, até que as lagartixas se torrem...”, e que teria sido recolhida “de um homem rústico” (p. 81). O grande mestre português ao dedicar sua obra a Jesus Crucificado, torna explícito que “o principal motivo de a fazer é acodir aos pobres enfermos faltos de médicos, ou de cabedaes para os chamar” (Semedo,1720:dedicatória, p. s/n). E ressalta a importância, para este fim, de estar publicando em português.

10 O Regimento, com versões em várias línguas, e já centenário quando publicado em português, destinava-se certamente a um público mais amplo do que os médicos, ainda que restrito aos alfabetizados. A crise sanitária provocada pelas epidemias de peste dos 1300, na Europa, norte da África e Oriente Médio, gerou novas formas de intervenção para o controle das doenças, a revisão do conceito de contágio pelos autores árabes, e, certamente, com a carência generalizada de médicos, a necessidade de ampla difusão das causas da peste e das formas mais indicadas para seu controle (Strohmaier, 1995).

11 Já o bálsamo para tratamento de ferimentos resultantes, principalmente, de traumatismos parece um texto voltado para os praticantes da arte de curar. Não necessariamente os físicos ou os cirurgiões, mas aqueles que estivessem capacitados a distinguir os vários tipos de ferimentos e sua relativa gravidade. Exige também o conhecimento dos componentes das receitas, das formas de manipulação, dos pesos e medidas e dos instrumentos adequados para chegar a produzir o medicamento. Publicado em latim, teria, já nos 1400, possivelmente um público mais restrito.

12 O Modus curandi cum balsamo
O bálsamo aqui descrito é um medicamento composto com propriedades cicatrizantes. As indicações de uso se referem especialmente às feridas traumáticas, mas não exclusivamente, já que o medicamento também é indicado para ulcerações na boca. É interessante notar que ao uso tópico se adiciona a indicação de ingestão no caso de feridas penetrantes, aparentemente para que o medicamento possa atingir a porção mais interna da lesão e exercer sua ação cicatrizante. De modo análogo, quando se trata de lesão na boca, o indicado é o gargarejo. As três variantes da receita básica do bálsamo, que constam do texto, trazem modificações da formulação original, e que permitem que o bálsamo seja bebido, usado para gargarejo, e sob a forma de ungüento, esta última indicada para auxiliar a primeira etapa de recuperação das feridas penetrantes do peito ou da cabeça.

13 A primeira receita do nosso texto, para beber, mistura o bálsamo com xarope de viola e endívia e água bugulosa, e aconselha seu uso diário ao nascer do sol. Os componentes desta receita são usados por Avicena e Galeno e continuam em uso no século XVIII, segundo D. Caetano de Santo Antonio (1704) comenta em sua Pharmacopea Lusitana. As violas, são listadas na Pharmacopea como flores cordiais; já o almeirão é uma das sementes frias menores. As violas devem ser colhidas cedo pela manhã, antes que o calor do sol dissipe suas virtudes. O Modus curandi recomenda que o remédio seja tomado ao nascer do sol. A receita parece garantir o equilíbrio entre as propriedades cordiais e frias de seus componentes.

14 A segunda receita orienta a formulação de um composto cuja finalidade é permitir a recuperação de ferimentos na cabeça que penetrem a dura mater. Seus componentes: o ‘óleo omphancino’ (azeite de azeitonas imaturas); o mel rosado (mel e sumo de rosas em partes iguais), também estão citados na Pharmacopea lusitana, e a terceira receita apenas orienta a mistura do bálsamo com água de rosas que é componente de muitos remédios, até o século XX. Seu uso deve tornar o gargarejo agradável e reconfortante. Na Pharmacopea Lusitana , encontramos a receita básica de Galeno para os ungüentos: quatro partes de azeite para uma de cera (de abelhas). São referidos também vários ungüentos contendo gorduras de origem animal e clara de ovo. Várias ervas se acrescentam nas receitas encontradas em Semedo, repetindo-se os óleos, gorduras e claras de ovos. Este autor inclui em suas receitas compostos minerais que provavelmente não eram de uso nos 1400 (Pita, 2000).

15 Os trezentos anos que separam o texto do Modus curandi e os autores setecentistas parecem ter acrescentado alguns ‘simples’ aos possíveis candidatos a componentes dos medicamentos, mas os princípios gerais da terapêutica não mudaram. Estes, em relação ao trauma, só mudarão radicalmente no século XX, com a universalização da anestesia, que permite a grande cirurgia; dos raios-X, que permitem acompanhar a evolução das fraturas e outras lesões; das medidas de controle das infecções. Deus é louvado, nas obras, mas sua atuação é esperada na revelação ou inspiração aos homens de remédios com virtudes curativas. O trauma, como resultado imediato de ações e interação humanas, é, desde sempre, socialmente determinado, e sua prevenção está primariamente na esfera do humano.

16 O Regimento proueytoso contra ha pestenença se inicia com uma prece:
“Ora pro nobis sancta dei genitrix. Ut mereamur peste epydimie illesi transire et promissionem Christi optinere.” Curvo Semedo nos diz que “o mais seguro prezervativo, & curativo da peste, são as confissões com verdadeyro arrependimento das culpas, as Orações, os jejuns, & as penitencias, & recorrer a Deos, tomando por intercessora a Santíssima Virgem Maria Mãy de Deos, & Advogada dos peccadores, cantando-lhe a seguinte Antiphona.” Da oração que se segue, destaca-se o apelo: “Ora pro nobis Santa Dei genitrix. Ut digniefficiamur promissionibus Christi.”(p.522) Por quatrocentos anos ressoa o mesmo apelo como o primeiro remédio, ou o mais seguro, contra a doença pestilencial.

17 O tratado de John Huxham (1757), ainda que trate de doenças epidêmicas, não menciona a peste nem orações com poder de cura. As epidemias de Huxham são as muitas febres e, principalmente, a varíola e uma forma de angina que é possivelmente diftérica. Semedo (1720), escrevendo sobre sua prática de mais de quarenta anos, provavelmente reflete ainda o impacto das últimas grandes epidemias de peste européias, nos Tal suposição é reforçada por sua menção à epidemia de 1631 em Niza de Provença, ao fornecer a receita do ‘antídoto d’El Rei Mitridato’, excelente “contra veneno e principalmente para o tempo da peste” (p.521). Semedo é também autor, em 1680, de um tratado sobre a peste, que, segundo o próprio autor, já era raro em 1720: “porque se gastarão os que imprimi” (p.522); e do qual não conseguimos localizar exemplares.

18 O corpo do texto do Regimento, após as introduções e dedicatórias de praxe, está dividido em cinco capítulos: 1- dos sinais prognósticos da pestilência; 2 – das causas dela; 3 – dos remédios dela; 4 – das conformidades do coração, e dos principais membros; 5 – e derradeiro, da sangria. A organização do texto, em que os sinais prognósticos antecedem a descrição dos sinais e sintomas que permitem o diagnóstico, segue a teoria hipocrática, apontando fatores de desequilíbrio do meio ambiente que favorecem o aparecimento de doenças epidêmicas (Littré, ). O autor inicia sua exposição discutindo os sinais prognósticos da ‘peste’, atribuindo a mudanças climáticas e ao movimento dos astros influências mediatas e imediatas sobre o equilíbrio dos organismos vivos e assim, sobre a saúde humana.

19 Longe de caracterizar uma visão ‘mágica’ ou ‘supersticiosa’, como tem sido muitas vezes visto (Cornford, 1981), o texto mostra de forma ordenada e coerente o desenvolvimento da pestilência a partir dos elementos explicativos da ocorrência das doenças como resultado do desequilíbrio das características, da quantidade e do fluxo dos humores que constituem o organismo humano (Cairus e Ribeiro, 2005). Este organismo, que integra o mundo imediatamente, não possui um meio interno, não estando ainda contido na redoma da fisiologia do século XIX. Pode ser, assim, imediatamente modificado pelas alterações dos elementos do universo. Não apenas pode, como é difícil imaginar que, a não ser por ‘milagre’ ou ‘magia’, possa escapar ileso a tais influências. Esta visão da doença persiste no século XVIII, mesmo incorporando progressivamente o discurso da física e da química.

20 Afirma o autor, a contagiosidade das enfermidades pestilenciais “porque dos corpos apeçonhentados procedem humores e fumos peçonhentos que corrompem o ar”. E as medidas para evitar o contágio: evitar aglomerações e contato com os doentes, ventilação adequada evitando-se sempre a exposição ao vento sul. Huxham (1757) reafirma que as febres pestilenciais e petequiais se originam do contágio e “may therefore affect persons of all constitutions, which will of course produce a great diversity in the symptoms.” (p.93) Também Semedo (1720) tem as febres malignas por contagiosas e passíveis de transmissão pelo ‘bafo do doente’.

21 Recomenda medidas para purificar o ar da casa do enfermo e acrescenta interessante afirmativa sobre as possibilidades do contágio: “Algumas febres malignas, e outras doenças perigosas sobrevêm muitas vezes aos corpos das pessoas que comeram carne de alguma rês, ou animal, que está enfermo, ou morreu de doença, e daqui fiquem advertidos os donos dos tais animais, que façam grandíssimo escrúpulo de os vender para que se comprem no açougue; e o mesmo escrúpulo devem fazer as galinheiras para não venderem galinhas, perus ou cabritos, que estão doentes; porque a doença daquele boi, porco, ou qualquer outra rês que estão enfermos se comunica, e transplanta naquelas pessoas, que comeram as tais carnes...” (p.265)

22 Coerente com o quadro teórico da época, os remédios incluem medidas preventivas e curativas numa atuação continua e integrada, parecendo evidente que não faz sentido separá-las pois atuam sobre os mesmos fatores básicos. A prevenção se inicia com medidas para facilitar a intervenção divina, única ação capaz de totalmente evitar os efeitos da conjuntura pestilencial. Afastar-se do local atingido pela peste é a recomendação seguinte. Mas se compreende que muitos não podem fazer isto. Deve-se, então, evitar a exposição aos ‘fatores de risco’: o excesso de luxúria, o vento sul, os fedores, o excesso de alimentos, os banhos, as aglomerações. Para evitar que a casa se contamine, deve-se acender o fogo que purifica o ar, assim como queimar ervas aromáticas e lavar a casa com vinagre e folhas de uva.

23 As medidas de proteção individual incluem alimentos adequados e nunca em excesso. O autor atribui a Avicena a advertência de que “aqueles que sempre querem encher seus ventres, abreviam seus dias”. Lavar freqüentemente as mãos e o rosto com água e vinagre e evitar todo o fedor são medidas que não permitem que a peçonha invada o organismo. Apesar do título, o capítulo não menciona remédios para tratar os doentes. Toda a ênfase está em se evitar a ‘peçonha’, pois quando esta se instala resta pouca esperança. John Huxham (1757), ao discutir a peste de seu tempo, a varíola, traz advertências preventivas semelhantes, mas então, tanto para a prevenção como para o tratamento, são fundamentais as considerações sobre a ‘constituição’ de cada paciente, além da ‘constituição’ do ar:

24 “A particular Regard then must be had to the Constitution of the Patient, and the Constitution of the Air, if we would practise with Reason and Success in the Small-pox, and indeed in all other epidemic Disorders.” (p.134) A variedade das situações é enfatizada e o autor questiona a noção predominante de que para cada tipo de doença está indicado um regime específico, sem consideração do paciente: “In a Word, the particular Case requires a particular Method, and the attending Physician is to shew his Judgement in adapting it rightly.” (p.128)

25 O Regimento reitera a importância de evitar “o bafo de outrem” para evitar o contágio da peste, e o uso preventivo de água de rosas ou vinagre para lavar a boca, os olhos e as mãos. A boa alimentação é fundamental e, como a peste é favorecida pelo aquecimento e ressecamento dos humores, devem ser evitados alimentos e bebidas quentes e secos. Assim, devem ser evitados todos os frutos que não forem azedos. As especiarias recomendadas devem trazer o equilíbrio, o tempero. É ressaltada ainda a recomendação de se manter o fogo aceso em casa pois purifica o ar; e o uso de clisteres para manter a evacuação regular. Por fim, o autor lembra que a alegria do coração é fundamental para a saúde do corpo; para manter o equilíbrio que evita a peste, o bom humor.

26 O uso do vinagre como preventivo contra a peste é encontrado também em Semedo: “Também conduz muito untar com o dito vinagre os narizes, as fontes da cabeça, e os pulsos dos braços.” (p.521) O uso de purgantes se manterá até o século XX como um dos meios privilegiados de eliminação dos humores em excesso, dos venenos, do contágio. Huxham (1757) afirma que mais de uma vez viu pacientes serem salvos de morrer de varíola, por episódios de diarréia, espontâneos ou provocados por medicamentos.

27 Em relação ao uso das sangrias, fala o Regimento da periodicidade (“uma vez em um mês, se pode bem fazer”), e das restrições por idade ou situação especial (mulheres grávidas e pacientes com fraqueza extrema). Recomenda que a sangria se faça antes das refeições, e após, se tome vinho ou cerveja. Após a sangria, não se deve dormir, como também aqueles que são atingidos pela peste não devem dormir. O sono permite o alastramento da pestilência no organismo, e o risco é tão grande que o sono deve ser evitado a todo custo, pelo menos até uma hora após as refeições, quando à quentura intrínseca do sono se acrescenta a da digestão, com possíveis graves conseqüências. Para madurar mais rapidamente o bubão, usam-se emplastros de folhas de sabugo e mostarda, ou de avelãs, figo e arruda; ou ainda, para beber em jejum, suco de barba-jovis, siligem (trigo) e tanchagem, misturado com leite humano.

28 O destaque dado à sangria, mostra o espaço central na prática terapêutica ocupado por ela. Esta primazia, que atravessa os séculos, justifica o pronunciamento de Curvo Semedo (1720) que já sinaliza as discussões de revisão terapêutica que se acentuam no século XVIII: “Sendo as sangrias e as purgas os dous maiores remédios que tem a Medicina para curar a maior parte das doenças, que padecem os corpos, nem por isso se devem fazer inconsideradamente, como muitos fazem, sem causa, ou precisa necessidade porque vi morrer algumas pessoas, que tinham posto a natureza em costume de se sangrar e purgar todas as primaveras e outonos, sem que tivessem causa que os obrigasse a fazê-lo.” (p.577)

29 Huxham (1757) é um defensor da sangria
Huxham (1757) é um defensor da sangria. No entanto adverte : “But I can by no Means approve of the promiscuous Use of Bleeding, so commonly practised in all Attacks of the Small-pox.” Razão e experiência – a medicina do século XVIII aprofunda a rebeldia contra a teoria e a tradição, e cada vez mais se faz ‘científica’. Ao fazê-lo, recria sua própria história, assumindo, como tantas outras disciplinas científicas, suas origens na ‘racionalidade grega’ do século V a C. O contraste da leitura dos textos renascentistas e do século XVIII, mostra a dificuldade de distinção dos mesmos em relação aos fatores relacionados com a determinação da doença e mesmo em relação às propostas terapêuticas. Por outro lado, a nosologia, particularmente no que se refere às doenças pestilenciais, permite a melhor datação dos documentos.


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