Aspectos histórico-jurídicos sobre a infância brasileira Cristina Lazzarotto Fortes Bacharel em Direito. Mestranda em Direito na Universidade de Santa.

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Transcrição da apresentação:

Aspectos histórico-jurídicos sobre a infância brasileira Cristina Lazzarotto Fortes Bacharel em Direito. Mestranda em Direito na Universidade de Santa Cruz do Sul

O período colonial e imperial Portugal: Igreja e Estado A violência do colonizador: Submissão, perda da identidade, perda de si. Jesuítas: Condição para a “humanização” das crianças ameríndias = perda do convívio familiar. Resistência = autorização para o uso da força, conforme lei portuguesa. Discriminatórios e preconceituosos: analfabetos x doutores. Índios x Africanos: Escravidão = 1530 a 1888.

A escravidão Separações familiares Baixa taxa de crescimento da população negra Crianças negras = “coisa” (brinquedos e animais de estimação), propriedade individual do senhor seu dono, patrimônio e mão-de-obra. Família ampliada Criança ‡ lucro = privadas e excluídas de qualquer proteção estatal ou social

Crianças abandonadas Câmaras Municipais: Desde Compromisso de receber e cuidar das crianças órfãs e abandonadas. Primeiramente, as Câmaras Municipais e Casas de Misericórdia remetiam as crianças para casas particulares (até 3 anos). Século XVII: Aumento do número de crianças abandonadas. Reivindicação social por medidas do Império. Esmola e recolhimento dos expostos em asilos. Sistema da Roda pela Santa Casa de Misericórdia: cilindro giratório na parede.

Casas de expostos Séculos XVIII e XIX: exerciam a assistência à infância no Brasil. Finalidade: Validar e institucionalizar o enjeitamento da criança desvalorizada (negra, mestiça, ilegítima); proteger a moral das famílias. Índice de mortalidade: 70% Manutenção: doações particulares Limite: 7 anos de idade. Após: Juiz as remetia para famílias (trabalho). Denúncias: locais de “depósito” de crianças negras (economia) Abolição: Código de Menores de 1927.

Brasil colônia e Brasil império Leis : antes da independência, provinham das Ordenações do Reino de Portugal, as quais impunham medidas punitivas bárbaras. Desde o direito romano, ser menor de idade significava atenuante para a aplicação da pena (infans = furiosus). No entanto, no Brasil anterior a 1830, as crianças e jovens eram punidos de forma igual aos adultos. Brasil colônia: crianças = mercadoria/mão-de-obra Brasil império: ampliação de instituições destinadas a atender crianças e adolescentes órfãos, pobres e abandonados. O ordenamento jurídico passa a se ocupar mais dos “menores”.

Código Criminal de 1830: 1a. Preocupação legal com os menores. Art. 10: Também não se julgarão criminosos: § 1o. Os menores de quatorze anos. Art. 13. Se se provar que os menores de quatorze anos, que tiverem cometido crimes obraram com discernimento, deverão ser recolhidos ás casas de correcção, pelo tempo que ao juiz parecer, com tanto que o recolhimento não exceda a idade de dezesete annos. Casas de Correção: somente em 1850 houve divisão em alas separadas. Crianças = ala de cunho correcional, destinada a menores delinqüentes, mendigos e vadios. Confinamento como forma de educação

Religião + Estado: a legislação das primeiras décadas do Brasil império preocupa-se com a criança órfã e exposta. Fundamento = ideologia cristã. Medidas de caráter assistencial, lideradas pela iniciativa privada de cunho religioso e caritativo. Educação: preocupação a partir de 1828, voltada para o ensino religioso e para a salvaguarda dos costumes. Decreto n A/1854 : possibilidade de admitir alunos pobres em escolas particulares, mediante gratificação do Estado; assistência educacional de meninos menores de 12 anos pobres e indigentes, para os quais se forneceria “vestuário decente e simples”, desde que a indigência fosse previamente justificada perante o Inspetor Geral. Ainda, instituía a obrigatoriedade de ensino para todos os meninos maiores de 7 anos, sem impedimento físico ou moral.

Decreto n A/1854: Art “Não serão admittidos a matrícula, nem poderão freqüentar as escolas: os meninos que padecerem molestias contagiosas; os que não tiverem sido vaccinados, e os escravos.” A partir de 1850 – inclusão de escravos na legislação: Aviso n. 190, de 1852, declara que artigos do Código Criminal também se aplicavam aos escravos menores. Escrava Ambrosina (mulher do capataz do seu senhor)

Lei do Ventre livre (n /1871): Art. 1 o : Os filhos da mulher escrava que nascerem no Império desde a data desta lei, serão considerados de condição livre. §1 o : Os ditos filhos menores ficarão em poder e sob a autoridade dos senhores de suas mães, os quais terão obrigação de criá-los e tratá-los até a idade de oito anos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãe terá a opção, ou de receber do Estado a indenização de 600$000, ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 anos completos. No primeiro caso o governo receberá o menor, e lhe dará destino, em conformidade da presente lei. A indenização pecuniária acima fixada será paga em títulos de renda com o juro anual de 6%, os quais se considerarão extintos no fim de trinta anos. A declaração do senhor deverá ser feita dentro de trinta dias, a contar daquele em que o menor chegar à idade de oito anos e, se a não fizer então, ficará entendido que opta pelo arbítrio de utilizar-se dos serviços do mesmo menor.

Lei do Ventre livre (n /1871): O menor, ainda, poderia se remir do ônus de servir, mediante prévia indenização pecuniária, oferecida ao senhor de sua mãe. Efeitos: crianças tornaram-se objeto de responsabilidade e preocupação por parte do Governo e tinham respaldo na lei.

O Brasil República Associação entre infância carente e delinqüência: Crescimento das cidades; aumento de crianças sem acesso à escola (mercado de trabalho exploratório); contexto de exclusão social que aproximou crianças e adolescentes da criminalidade juvenil. Questão da infância sai paulatinamente da esfera religiosa para ingressar na seara jurídica: inicialmente, ainda havia o entendimento de assistência pública à infância como uma espécie de “caridade oficial”. Código Penal de 1890: altera a idade de imputabilidade relativa de sete para nove anos.

Novos olhares para a infância: além dos religiosos, juristas e médicos passaram a se preocupar com a vida moral e familiar da criança. Criança = problema ; ameaça à ordem pública “O problema da criança” começa a adquirir uma dimensão política, consubstanciada no que muitos denominavam de “ideal republicano” na época. Não se tratava mais de ressaltar a importância, mas sim a urgência de se intervir, educando ou corrigindo “os menores” para que se transformassem em cidadãos úteis e produtivos para o país, assegurando a organização moral da sociedade. (Irene Rizzini)

Decreto n. 847, de 11/10/1890: dispunha sobre as crianças que “perturbam a ordem, a tranqüilidade e a segurança pública”. Repressão = defesa da ordem Medicina higienista: preocupava-se com a higiene coletiva. Alvo: criança, porquanto os índices de mortalidade infantil eram muitos altos. Garantir a saúde é tido como obrigação do Estado. Puericultura: ciência que trata da higiene física e social da criança. Médicos higienistas: responsáveis pela abolição da Casa dos Expostos (condições precárias). Este movimento contribuiu para que o Estado se sentisse pressionado a assumir responsabilidades no tocante à infância. Aqui, a criança surge como futuro da humanidade.

Atenção para a instrução e educação das crianças: instituições de caridade = ensino centrado na profissionalização básica (ingresso apenas nas categorias mais baixas da hierarquia ocupacional). Caridade oficial = internatos, institutos, reformatórios, escolas correcionais. Diferenças entre as crianças: branco/negro; legítimo/ilegítimo; pobre válido/pobre inválido: - Asilo Agrícola Santa Isabel (1886), “destinado a meninos vagabundos ou destituídos de amparo da família...” - Orfanato Santa Maria (1872), “formação de empregadas domésticas e semelhantes – para meninas de cor”; - Recolhimento das Órfãs, “recolher e educar órfãs filhas de legítimo matrimônio [...] também criar para a sociedade mulheres estimáveis por suas virtudes domésticas”.

Decreto n. 145/1893: objetivo = “isolar os vadios, vagabundos e capoeiras”; autorizava a criação de uma colônia correcional, para onde pessoas não sujeitas ao poder paterno ou sem meios de subsistência seriam corrigidos pelo trabalho; Lei n. 947/1902: “menores viciosos” = menores acusados criminalmente e órfãos abandonados encontrados em via pública, se assim considerados por um juízo, deveriam ser internados nas colônias correcionais, permanecendo lá até os 17 anos. Criança pobre e desvalida = adolescentes infratores. Legitimidade da violência estatal.

Os menores Século XX : humanização da justiça e do sistema penitenciário “Salvar o menor: eis o lema que sucedeu a antiga preocupação de castigá-lo.” Decreto n /1927: Código dos Menores, ou “Código Mello Mattos”. Desenvolvido pelo debate entre administração, legislativo, judiciário e instituições assistenciais. Ênfase para a implantação dos Tribunais dos Menores. Atribuições do Juízo dos Menores: assistência, proteção, defesa, processo e julgamento dos menores abandonados e delinqüentes, com menos de 18 anos.

Juízo dos Menores: órgão que centralizava o atendimento oficial ao menor, por meio da internação dos menores abandonados e delinqüentes nas instituições oficiais da época, que eram poucas e em más condições. Houve, então, uma campanha pela organização da assistência infantil. Código Mello Matos de 1927 : instituiu a vigilância de autoridades públicas que exercessem atividades com os menores. Envolveu aspectos psiquiátricos nos processos judiciais, culminando em uma estratégia de psiquiatrização e criminalização da pobreza. Laboratório de Biologia Infantil: exames físicos, mentais e sociais para “investigar as causas que levam a criança ao vício e ao crime, apurando a influência do meio e das taras hereditárias”. Respaldo legal para investigação sobre os corpos dos menores e hábitos sociais das suas famílias.

Criança e adolescente carentes: potencialmente criminosos. Categoria dos menores : direito especial, de exceção. Para as demais crianças havia o Código Civil de É um direito especial que já nasce menor. Instituições: SAM – Serviço de Assistência ao Menor (percebida socialmente como SAM – Sem Amor aos Menores, por ser local de castigos corporais e violência sexual); FUNABEM, conhecida pela sociedade como escola do crime; FEBENS, no âmbito dos estados. Antes da CF/88 e do ECA, 80 a 90% das crianças e dos jovens internados nas Febens não eram autores de fato definido como crime.

Movimento social pela criação de um novo código de menores. Lei n /1979: Novo Código de Menores. Substituiu a classificação de “menor abandonado e delinqüente” por “sistema de descrição do estado sócio-econômico-familiar” dos menores. Significou retrocesso de mais de 50 anos, pois colocou o menor em situação pior que a do criminoso adulto, instituindo a prisão provisória para o menor, a qual poderia ser decretada sem a presença do curador de menores.

Há um mistério na sucessão das gerações, nas quais os ciclos da vida terminam por coincidir com os ritmos, os tempos, as continuidades e as transformações da própria sociedade: as gerações medem o tempo e, ao mesmo tempo, por ele são medidas; isto explica porque desde sempre, em todas as sociedades, nós nos preocupamos com a infância, para a qual foram dados os nomes mais variados, mas a qual assumiu a dignidade da autonomia somente a partir de uma época relativamente recente. (Eligio Resta, 1998).

Uma sociedade é a sua infância; o seu modo de pensar e de proteger o seu futuro encontra-se todo no destino que a sociedade reserva à infância. A infância é a sociedade. Eligio Resta.